a leitura do humano e o humano da leitura: uma abordagem poética

Nossa cultura é predominantemente escrita, como a de grande parte do mundo ocidental. Ou, melhor dizendo, essencialmente gráfica – já que não lemos apenas textos em línguas maternas ou estrangeiras, mas também imagens como fotos e vídeos. Somos diariamente rodeados de jornais, revistas, livros, e-mails, cartas, filmes, músicas e diversos outros tipos de texto que têm como função, a princípio, nos fornecer informação, nos informar, nos educar, nos comunicar algo. Tanto professores quanto alunos nos encontramos enredados em uma infinidade de dados que nos angustiam e nos apressam a ler, entender, compreender e apreender em sua enorme e inquietante inapreensibilidade.

Em meio a tanta pressa, passamos a agir de modo quase automatizado não só em nosso trabalho como em nossas vidas, e dificilmente chegamos um dia a nos fazer a pergunta que, ao menos aos educadores, deveria ser primordial: O que é o ler? E, ao questionar, é necessário compreender que não estamos na busca de uma resposta final, terminante e conclusiva. Dedicados a tal tipo de investigação já há centenas – quiçá milhares – de cientistas, lingüistas, pesquisadores e leigos ao redor do mundo, cada um com uma definição de leitura e de linguagem na ponta da língua, apenas aguardando a pergunta. E de que nos servem tais respostas? Conduzem a muitas práticas, todas possivelmente de eficácia comprovada estatisticamente. No entanto, nos perguntamos: as definições compreendem o humano? Será que partilhamos todos nós de algo que nos reúne enquanto espécie ao mesmo tempo em que nos distancia de outros seres? Ou seja: onde repousa nossa identidade com o humano e nossa diferença do não-humano? Seria isso algo científico e objetivo, como possuir certo órgão, certos genes em comum, células de determinado tipo? Ou será que o humano, além do que a ciência é capaz de medir, possui algo que não cabe em definições? O humano, antes de se tornar conceito, precisa se apresentar, e aquilo que se apresenta é sempre, a princípio, uma questão. O próprio método científico, ainda que pareça disso se ter esquecido, necessita de algo dado pela realidade a partir do qual possa propor uma hipótese. Mas será que nós mesmos nos queremos lembrar das questões?

No livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, acompanhamos parte da vida de uma família que vaga pelo nordeste do Brasil em busca de condições básicas de sobrevivência. Em certo momento, o filho mais velho da família interroga Vitória, sua mãe, pelo sentido da palavra inferno.

Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.

O Menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.

– Bota o pé aqui.

A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas:

– Arreda.

O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:

– Como é?

Sinhá Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.

– A senhora viu?

Aí sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.

O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia. (RAMOS, 2001, p. 54)

O primeiro fato a comentarmos se dá na curiosidade do filho. Como grande parte das personagens do livro, é analfabeto e nós o classificaríamos sem dificuldade como rude, e isso se dá mesmo no seu modo de falar parca e dificultosamente. Seu espanto ao ouvir a palavra inferno, no entanto, não é afetado pela falta de água, de comida, de educação. Sua curiosidade genuína é despertada pelo mero som de uma palavra, como em geral ocorre às crianças, e, por reação, passa a perguntar. Sinhá Vitória parece já ter ouvido falar alguma vez do tal inferno, mas sua resposta não satisfaz ao menino. Ele insiste na pergunta e questiona a proveniência da resposta da mãe (A senhora viu?), e acaba por tomar um cocorote.

As crianças – muitas vezes nossos alunos – estão em um lento processo de conhecer o mundo e perguntar por nomes e explicações. Por isso, nos perguntam com insistência; a maior parte de suas frases são interrogativas e não afirmativas. Passam, até, pela chamada fase do porquê, entre os quatro e cinco anos de idade, quando querem estabelecer para cada coisa uma causa e para cada causa outra causa infinitamente. E como respondemos a isso? Perdemos a paciência e evitamos as perguntas, mudamos de assunto, aplicamo-lhes cocorotes. Quase sempre, estamos preocupados em estabelecer respostas conclusivas às questões das tão sábias crianças que, privilegiadas, ainda não se deixaram dominar pelo hábito de tomar tudo por certo.

No presente texto, contudo, nos colocamos à disposição das questões, por acreditar que são o que temos de mais primevo em nossa experiência da realidade antes de sermos podados, punidos e criticados em nosso questionar. Desse modo, iniciamos a procura de um caminho que nos possa conduzir a algo para além do que já sabemos. E do que já sabemos? Para responder a essa pergunta, podemos percorrer brevemente nossas práticas de sala de aula, nas quais estão sempre implícitas, ainda que disso não nos demos conta, determinadas visões teóricas.

Em aulas de língua estrangeira, em geral, temos à disposição livros que, em suas páginas, nos proporcionam textos para trabalho em sala de aula. Mas que textos são esses? Em sua maioria, são textos problemáticos a partir da dificuldade que têm os próprios autores-organizadores de nos apresentar materiais originais e autênticos, já que o uso destes implica compromissos financeiros relativos a direitos autorais. Além disso, os textos não apresentam em si grande substância de pensamento, pois têm por objetivo inicial exemplificar, fixar e trabalhar um determinado ponto gramatical, grupo de expressões ou vocabulário-chave de uma aula. O puro potencial de serem atuais lhes é vetado pela larga tiragem e pela distância entre edições. Muitas vezes os assuntos precisam se manter interessantes por cinco, dez anos, até que seja lançada outra edição do material.

Se os textos já não nos trazem conteúdo, como se dá nosso trabalho com eles? O que muitas vezes trabalhamos são perguntas do famoso estilo copiar-colar, cujas respostas já se encontram prontas no próprio texto, esperando uma extração objetiva e simples. Dizemos aos alunos que o céu é azul para, em seguida, perguntar-lhes qual a cor do céu. Os alunos que nos habituamos a chamar de dedicados respondem prontamente: azul, é claro. Outros – quase sempre a maioria – permanecem silenciosos ou realizam tais tarefas apaticamente. Pudera! Uma máquina das mais rústicas poderia fazer esse trabalho por eles – e eles têm plena consciência disso, expostos que estão a inúmeras ferramentas de pesquisa de informação. Sabem que um simples clique em um site de busca como o Google pode encontrar a resposta de perguntas como essa. Que tipo de pensamento estamos estimulando? Onde está o humano de tais questões que pode levar cada um de nós e de nossos alunos a nos interessar por um texto? Nunca nos perguntamos, por exemplo, o que é o céu, ou seja: o que faz do céu céu. Seguindo esse modo de pensar, podemos nos perguntar: o que é um texto? Como responder a tal pergunta?

A princípio, consideramos textos conjuntos de palavras agrupadas em uma folha de papel por um determinado autor. As definições dicionarizadas variam, mas se atêm a esse mesmo tipo de texto. Mas um texto em um site não é um texto? Uma música que não se lê, mas se ouve, não é um texto? Um filme que se vê não é um texto? Uma foto, uma pintura, uma escultura, não são textos? As definições dicionarizadas não parecem dar conta da ambigüidade da palavra. Para tentar ir além, podemos buscar um caminho adiante através de um caminho para trás. Tal empresa não se origina em uma fé na superioridade do passado, um conservadorismo ou um saudosismo, mas no fato de que a linguagem como um todo é, em sua origem, um modo de indicar presença do que rodeia e proporciona o pensar ao ser humano. Como exemplo, tomemos a palavra discurso, que diz, gestual e concretamente, o ato de cursar, ou seja, caminhar, modificado pelo prefixo latino dis-, que nos indica movimento em múltiplas direções, além de um destacamento. O homem caminha destacado da realidade a seu redor? Sim e não. Ele se destaca da Terra para existir enquanto homem, mas, ao mesmo tempo, suas múltiplas direções se encontram sempre dentro da própria realidade, da qual não se pode livrar. Nesse caminhar, ele con-templa e habita seu caminho, e diz o que contempla: o caminho, o discurso. A partir daí, se desenvolvem sentidos secundários ­– mas não menos importantes – para o termo. Nossas línguas modernas, contudo, estão tomadas no nascedouro por uma funcionalidade de tal forma que, ainda que sejam línguas humanas, se deslocam para longe de nós ao se vincularem à funcionalidade técnica enquanto comunicação, informação e expressão. Tendo isso em mente, propomos uma visão do texto em sua dimensão lingüístico-gestual, tão bem comentada por Manuel Antônio de Castro no texto “A leitura e os diferentes textos”:

Texto vem do verbo tecer. Uma boa imagem para texto é rede. Olhando uma rede, nota-se logo um conjunto de linhas que se entre-laçam através dos nós. O entre-laçamento de palavras e orações forma um discurso. Este transmite idéias e conhecimentos, porque as palavras reunidas em orações vão formando um sistema de conceitos. Os diferentes textos ou discursos se estruturam na medida em que formam diferentes sistemas de conceitos. A dificuldade em ler e compreender está no desconhecimento dos conceitos por parte do leitor.

Muitas vezes até a maioria das palavras são semelhantes e as mesmas. O que muda? Cada passo na rede é complexo, porque ele sempre se bifurca, daí surgem diferentes sintaxes e conceitos. As palavras passam a ser altamente ambíguas. Tudo isso dificulta a compreensão da leitura.

Além das linhas e nós, há também os buracos da rede. Eles indicam a fluidez e ambigüidade das palavras, pois elas se movem dentro de vazios e silêncios. Isso é o mais difícil de perceber por parte de um leitor não habituado à reflexão e a muita leitura. Dependendo do discurso conceitual há uma ambigüidade crescente. O comunicativo é o menos ambíguo e o mais é o poético. É que neste os conceitos são substituídos pelas questões. Estas oferecem múltiplas possibilidades de leitura, todas válidas e verdadeiras, se resultam de um diálogo com a obra. (CASTRO, 2006)

O primeiro parágrafo citado nos fala dos discursos, conceitos e sistemas que, entrelaçados, compõem o texto. Em sala de aula, equivalem à informação e ao conteúdo que pedimos aos alunos que encontrem para responder nossas perguntas de compreensão. Não podem ser renegados, contudo, já que sem a compreensão de tais sistemas e jargões não chegamos sequer a uma primeira leitura. Porém, mais dois outros traços – intimamente conectados – do texto são mencionados, e são dois aos quais não costumamos dar muita atenção. O primeiro deles se refere à complexidade dos passos na rede, já que se bifurcam. O caminho percorrido no texto nunca é o mesmo, seja ele feito por pessoas diferentes, seja pela mesma pessoa em instantes distintos: os sentidos de nosso percurso variam. O segundo deles são os buracos na trama, e desses, comumente, nunca se ouve falar.

Enquanto falamos, enquanto lemos, não damos atenção ao silêncio. A princípio, tal colocação parece uma figura de linguagem retórico-estética, mas sua compreensão pode se dar de modo mais profundo. Há nela algo fundamental que, por ser negativo, não reconhecemos. É necessário, no entanto, nos lembrarmos: a palavra só se dá no silêncio. Como? Gestualmente: em meio ao barulho, não se fala e não se ouve. O silêncio se dá na proveniência da palavra e também na escuta do ouvinte/leitor. Além disso, no texto, podemos considerar que a palavra, enquanto diz (fio da rede/som), também não diz (buracos da trama/silêncio), ou seja: ao mesmo tempo em que nossa escolha vocabular delimita um campo semântico, abre também infinitas possibilidades de leitura. A ambigüidade do texto provém do fato de que o que está dito foi pensado, e a continuidade do processo ocorre quando pensamos naquilo em que o texto não pensa, em um diálogo que não se limita ao âmbito da comunicação.

Vislumbramos, até então, um pouco de como se pode dar uma aproximação entre leitura e aluno. Mas ainda é possível aprofundar: em que âmbito, então, se dá o diálogo da leitura? O que é a leitura? O que é o diálogo?

A leitura vem do verbo ler que, em latim, se diz legere, de origem grega: légein. O legere, como o légein, tem o sentido gestual de escolher, apontar, ordenar, colher, recolher e ainda caminhar através. Sua raiz, leg-, é a mesma da palavra moderna legume. A leitura, nesse sentido, se configura como um processo de apontar e colher, ao longo de um caminho, aquilo que nos interessa e nos alimenta. O que é aquilo que nos interessa e alimenta enquanto lemos? O que pode nos interessar e alimentar? Que tipo de objeto é esse que nos alimenta?

Se percorrermos o caminho etimológico da palavra inglesa read, temos também perspectivas interessantes. Além do tradicional decodificar, juntar palavras e fazer sentido, encontramos mais uma vez colher e recolher. E, em semelhança ao caminhar através, de legere, encontramos um sentido de presenciar e freqüentar. O que é isso que colhemos, recolhemos, presenciamos, e no qual caminhamos? De que modo isso nos alimenta? E se tornamos a pergunta uma negativa: que tipo de objeto não colhemos, recolhemos, presenciamos? A princípio, o objeto de ler parece ilimitado. Nos indica a leitura todo um modo de se relacionar com a realidade. Mas a realidade é um objeto? O caminho em que caminhamos é um objeto do qual somos sujeito?

Nosso modo habitual de relacionamento com a realidade é, sim, uma relação sujeito-objeto. Consideramos o homem o ser supremo que, através de suas inteligência e sabedoria superiores está apto a dominar e subjugar a realidade. Eventos como tsunamis, tufões, erupções vulcânicas, contudo, nos levam a reconsiderar nossa colocação subjetiva no mundo. Se pensarmos nos sentidos de caminhar e presenciar com cuidado, podemos imaginar que somos nós os objetos, em meio à enorme e estonteante realidade. Mas talvez isso seja apenas uma inversão de um modo de ver igualmente pouco cuidadosa. Encontramos, mais uma vez, na instância mítico-literária um modo diferente de encarar o homem. O “Mito de Cura” nos aponta para uma possível origem do homem que não é científica, antropológica ou matemática e, assim, não se baseia em um modo utilitário de se relacionar com a realidade através do binômio sujeito/objeto.

Quando Cura atravessava o rio, viu a lama argilosa e, cogitando, a ergueu e começou a fingir.

Enquanto deliberava sobre o que já tinha feito, Júpiter interveio. Cura rogou-lhe que lhe desse um espírito e facilmente o conseguiu.

Como Cura queria impor-lhe um nome a partir de si própria, Júpiter o proibiu e disse muitas vezes que lhe deveria ser dado seu nome.

Enquanto Cura e Júpiter discutiam, a Terra se levantou e quis que tivesse seu nome, por ter fornecido seu corpo.

Tomaram Saturno como juiz; imparcial, ele proferiu a sentença: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, na morte acolherás o espírito; e tu, Terra, por teres dado o corpo, acolherás o corpo; e porque Cura de fato fingiu o princípio, o terá enquanto estiver vivo. Porém, como há controvérsia entre vós a respeito do nome, que seja chamado homem, porque parece ser feito de húmus."

O mito nos apresenta uma diversidade de imagens a interpretar. Júpiter, o equivalente latino do Zeus grego, é diu-pater, o deus dos deuses olímpicos. É, no mito, a origem da dimensão desconhecida do divino que se manifesta em cada um de nós como espírito e que a ele retorna após a vida. Terra, por sua vez, representa o que é, em nós palpável, nosso limite corpóreo. São essas duas dimensões as que costumamos pensar em separado em binômios como corpo e alma ou matéria e espírito ou aparência e essência.

Mas o mito nos mostra algo que não costumamos pensar: Cura. O que é Cura, isso que nos tem enquanto estamos vivos? Em nossa língua portuguesa, cura é um método ou resultado de tratamento de saúde. Também pode indicar um modo de preparar, como com madeira ou queijo, e, ainda, o ato de matar o bicho-da-seda para usar seu casulo na confecção. Parecem significados distintos e independentes, a princípio, mas um olhar mais cuidadoso pode tentar uni-los. Em latim, cura quer dizer zelo, cuidado, preocupação, direção, administração, curadoria, tratamento. É, ainda, o termo que deu origem ao adjetivo curioso. Seríamos nós, humanos, guiados por Cura, curiosos? O que quer dizer curioso? Pode ser tanto cuidadoso quanto aquele que manifesta curiosidade, vontade de aprender, pesquisar e saber. O termo cura nos apresenta, de fato, uma quantidade assombrosa de possibilidades de leitura.

Cura é o processo e o resultado de um tratamento, de tentar levar alguém a seu estado óptimo. Não só alguém, mas algo, como o queijo, a madeira e o bicho-da-seda, atualizados pelo homem em sua potencialidade. E como a Cura nos tem? Somos tomados por Cura, por zelo, por cuidado, preocupação, direção. O homem é aquele que, curioso, se pergunta pela direção a tomar. O homem tem cuidado com o seu caminho – aquele que só ele pode fazer. Enquanto vivos, estamos todos necessariamente obrigados ao cuidado com nosso próprio sentido de vida. E seria isso algo de concreto como o resultado de um tratamento, algo que atingimos em algum momento? Supondo que sim, seríamos levados a crer que temos um objetivo final em vida. Alcançado, porém, tal objetivo, qual seria o sentido da vida? Seríamos seres com prazo de validade?

Não podemos nem queremos crer nessa possibilidade. Nosso sentido não se pode dar no dia em que morremos, pois isso nos levaria a uma vida despropositada por só encontrar sua plenitude quando não mais for vida. O sentido se dá no próprio caminho – que é sempre um caminho cuidadoso – ao pensarmos e dialogarmos com a realidade ao nosso redor. “A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante.” (RAMOS, p. 19) Fabiano, em Vidas Secas, é levado pela seca a prosseguir caminhando. Somos levados pela negação das condições a buscar condições, e nosso caminho, sempre singularíssimo, é de muito cuidado.

Na leitura, somos levados pelo negativo do saber – o não-saber – a pro-curar o saber. Mas podemos encarar tal relacionamento de forma subjetiva/objetiva? O texto – a realidade – existe apenas para nosso domínio? Ou será que é possível dialogar? Dialogar pressupõe sempre dois, e não dois hierarquicamente nivelados. São dois que se põe a falar e silenciar na pro-cura cuidadosa de seus caminhos. Assim, se colocam-se no mesmo patamar, uma relação sujeito/objeto não pode configurar o diálogo. Porém, é ainda essa relação que costuma reger nossas práticas de leitura.

Nossa leitura se guia pela informação. Estamos na busca das notícias, das novidades, de alguma forma de conhecimento que nos possa suprir e fortalecer em nossas convicções, nossos argumentos, nossa constituição intelectual. Mas será que é isso que nos constitui? Informar quer dizer dar forma a, fazer saber, dar instrução, dar caráter ou essência. Em latim, in-formar vem de forma, que indica aspecto, forma, formato, mas também regra, padrão, categoria, mais o prefixo in-: um movimento para o interior. Informar seria o ato de dar forma, padrão e categoria ao interior, ou, ainda, ir em direção ao interior para dar forma, categoria e padrão. Mas como pode esse interior, a nossa suposta essência, ser modificada por algo que nos é externo? O humano se dá pelo acúmulo de informação? O conhecimento e o humano são quantitativos? Ainda mais: como pode o nosso interior ser formado por categorias? Onde fica a nossa singularidade?

O significado dar instrução, de informar, nos remete ao modo como encaramos a leitura. Achamos que nos instruindo estamos nos fazendo um grande bem, assim como aos nossos alunos. A mesma palavra, contudo, nos indica algo que pode ir de encontro à singularidade. Instruir se assemelha a construir, mas o prefixo in-, mais uma vez, nos indica um movimento de fora para dentro. Em contraste, construir possui co-, que fala de um movimento conjunto. A chamada instrução que buscamos contém em si uma estrutura hierárquica e, como tal, tem por fim a manutenção da estrutura hierárquica.

No ramo da lingüística aplicada, muito se critica hoje em dia o modelo da educação que tem o professor como transmissor. Não mais se fala em instruir, mas em co-construir. De fato, cada vez mais cresce em nós a consciência de que nosso papel, enquanto professores, muito mais que de informar, instruir e formatar nossos alunos, é de educar. Percebemos, diariamente, que não há modo de transferir ou transmitir nosso conhecimento para os alunos. Ao menos por enquanto, tal tipo de transplante não foi inventado pela medicina. O papel do professor passa a ser, pois, o de auxiliador, com o qual a participação do aluno cresce em importância. Mas como buscar a chamada co-construção na leitura, então?

Numa possível resposta, nos acena o verbo interpretar. Costumamos pensar que interpretar é algo que fazemos com textos literários, poéticos, difíceis. Relacionamos a ação interpretativa a um decifrar algo cuja leitura se nos apresenta dificultosa, como se, caçadores da arca perdida, fôssemos incumbidos da missão de encontrar algum tipo de mensagem secreta, conteúdo escondido, tesouro abstrato. Nessa missão, seria o professor o sacerdote que, possuidor dos conhecimentos e dados necessários à leitura, decodificaria o texto, restando aos alunos o papel de concordar ou discordar – embora raramente o façam ou se interessem por fazê-lo. Aquilo de que nos esquecemos, no entanto, é que estamos o tempo todo, em nosso processo de leitura, fazendo escolhas (legere). O texto não é um objeto estático do qual retiramos significados. Se estamos à procura do diálogo, precisamos encará-lo como, se sujeito, tão sujeito quanto nós mesmos, junto com o qual construiremos sentido.

Interpretar é em latim interpretari. É a tradução do verbo grego hermeneuein, que significa: transmitir, trazer mensagens. O intérprete dos deuses é Hermes. Tanto hermeneuein como Hermes provêm do radical “...Wer ou Wre, que significa o falar e o dizer da língua enquanto interpretação do mistério” (Leão, 1977, 248). Interpretar é descer à dinâmica da história. Pela interpretação não se analisa ou esclarece algo no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro da razão e da expressão (discurso). Ao contrário: no questionamento interpretativo se elabora a diferença e identidade de língua e linguagem, discurso e discursividade. Interpretar é reconduzir algo a seu lugar de origem, à linguagem. (CASTRO, 1982, p. 80)

Nessa condução interpretativa, não se encaixam apenas os textos “difíceis”. Se queremos buscar o concreto das palavras, podemos nos perguntar pelo mistério do desconhecido (buracos da rede) em qualquer instância do conhecido (fios e cruzamentos). O inter-, de interpretar, é o que nos deu entre, em português. E em que sentido o entre entra na leitura? A preposição diz: a meio de, em relação de colateralidade, cerca de, por volta de, junto de e durante, entre outros. O interpretar se dá quando, em meio e por volta do texto, estamos com ele e com os demais leitores em relação de colateralidade. Mas como podemos estar em meio ao texto e, ao mesmo tempo, por volta dele? Não seria uma posição contraditória? Não, porque não é estática. Nosso movimento interpretativo se dá enquanto, dentro do texto, estamos fora dele, ou seja, em nós mesmos. Entre essas duas posições é que escolhemos com cuidado nosso modo de caminhar no texto.

E se, nesse movimento, nos lembrarmos da colateralidade e do durante, chegamos ao papel do professor. Em colateralidade, ele é aquele que pode instigar e questionar não em busca de respostas prontas, mas no sentido de levar os alunos ao desconhecido, fundamental ao conhecimento. Em nosso auxílio, vem o verbo educar. Tendemos a pensar que educar é sinônimo de instruir e informar quando ensinamos e transmitimos conhecimento aos nossos alunos. A etimologia do verbo, contudo, nos faz vislumbrar outras possibilidades.

Educar, em seu sentido originário e radical diz: ex- (para fora) e ducere (conduzir). Logo, educar é conduzir para fora o ser humano, e não levar para dentro conhecimentos externos. Só que esse “para fora” não indica um deslocamento espacial, como quem sai de uma sala para um pátio. O “para fora” indicia o vigor de manifestação pelo qual os homens, se apropriando de um tempo e de um discurso, deles fazem sua habitação, sendo o que são: seres ex-istentes. (CASTRO, 1982, p. 69)

Educar se apresenta, então, como o processo de trazer os alunos para fora ou para cima ou para além do que já são. Significa estimular a busca de cada um.

De certa forma, é essa a proposta desse texto. Poderíamos concluí-lo com a apresentação de sugestões práticas e receitas prontas, mas, agindo dessa forma, não estaríamos nos apropriando do educar como gostaríamos. Fiquem as palavras como uma provocação para que repensemos nosso método do instruir e tenhamos em mente o construir pelo educar, em um caminho respeitador das diferenças de cada um em que não precisemos, portanto, dispensar alunos como incapazes ou desinteressados por não se adaptarem a nossa instrução, mas sim ouvir e dialogar com cada um deles em seu modo especial de ser.


Bibliografia

BEAUFRET, Jean. "Du lógos au langage". In: Dialogue avec Heidegger: philosophie moderne. Paris, Minuit, 1973.

CASTRO, Manuel. O Acontecer Poético – A História Literária. Rio de Janeiro, Antares, 1982.

FARIA, Maria Lucia Guimarães de. “A pedagogia ascensional das Primeiras Estórias”. In: Revista Diadorim N. 1. Rio de Janeiro, UFRJ, Programa de pós- graduação em letras vernáculas, 2006.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis, Vozes, 1977.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record, 2001.

ROSA, João Guimarães. “A Terceira Margem do Rio”. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.

Um comentário:

Sebastião Edson Macedo disse...

jun,
esse texto é seu? ual. é uma leitura "mergulhada", heim? ainda tenho que refletir mais sobre umas partes, mas o considero "pano pra manga" pra uma discussão sobre os nós do humanismo heideggeriano e os "des-nós" que o graciliano dá em heidegger. deixa e refletir mais...