A literatura entre os muros

Inquietações iniciais e diagnósticos contemporâneos

Literatura, que isso?” — A pergunta, que pode ter sido ouvida da boca de um aluno, nos convoca a pensar aquilo que sempre pensamos na Faculdade de Letras, ou ao menos pensamos pensar. Mais do que isso, nos remete ao caráter inerente das duas questões: literatura e educação. As múltiplas correntes críticas, se, por um lado, nos desnorteiam com a variedade de respostas à pergunta, por outro lado refletem a complexidade do objeto em questão. Alunos, doutores e leigos não cessam de responder à pergunta, e, de alguma forma, o que se ensaia nesse texto será apenas mais uma resposta. Pode-se tentar, ainda, no entanto, perguntar também: o que se pensa quando se discute o que é literatura? A resposta não viria, é claro, na forma de um panorama dos estudos literários atuais. Tal tarefa demandaria mais espaço do que se pode aqui fazer. Além disso, guias e manuais das diferentes escolas teóricas existem. Mais nos interessa aqui pensar o que hoje se ensina nas salas de aula de literatura e o que fundamenta tal ensino. Não dispomos, contudo, de dados e estatísticas abrangentes, o que, de antemão, compromete a cientificidade do trabalho. Tal objeção conservaria em si, porém, o pressuposto de que literatura e sala de aula sejam objetos científicos sobre os quais se possa afirmar seguramente alguma coisa. Entretanto, se nada se puder afirmar sobre o solo instável da literatura, o que fazer deste texto? É o dilema de todo discurso: a possibilidade do pensamento acerca de coisas instáveis. Ao longo de nossa reflexão, portanto, correrá implícito, no branco entre as linhas, o fio dos limites do pensamento.

No recente filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, levamos alguns choquespositivos ou negativos — ao nos aproximarmos do cotidiano de uma sala de aula de língua e literatura francesa na França. À saída do cinema, ouvimos comentários que se queixam da imoralidade e falta de respeito dos jovens da atualidade pelos professores. Poderíamos, assim, diagnosticar um problema e apontar falhas da educação contemporânea, e enfim cair no pessimismo. Ou, ainda, apontar as vantagens de tal situação, e seríamos otimistas. Ser otimista ou pessimista, porém, exige pouco esforço e pensamento. Mais vale, cremos, pensar o que ora se apresenta como uma crise antiga: a questão das aulas de literatura, de que ouvimos falar pelos amigos que, a despeito dos obstáculos, insistem no trabalho em sala de aula. É o que também transparece quando Tzvetan Todorov diz que a literatura está em perigo. Mostra-se Todorov — e nós, muitas vezes — abismado com a situação e popularidade da literatura. Atribui isso aos parâmetros curriculares estatais, que priorizariam a “reflexão sobre a história literária e cultural, os gêneros e registros, a elaboração de significação e a singularidade dos textos, a argumentação e os efeitos de cada discurso sobre seus destinatários” (2009, p. 26). Segundo ele, a herança do estruturalismo — do qual foi outrora um dos principais elaboradores e divulgadoresainda seria forte em seu país, e estaria sufocando o ensino de literatura, assim distanciado das reflexões sobre a “condição humana”, o “indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero” (2009, p. 27). Isso se daria pela tendência ainda predominante na academia francesa que “se recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundo” (2009, p. 40).

O que é, todavia, — e isso não chega a ser suficientemente questionado por Todorov — um discurso sobre o mundo? Seria algo nos moldes de um livro de história, de uma notícia de jornal ou seria a literatura outra coisa? No segundo casocom o qual, cremos, Todorov concordaria — o que seria a instância literária? Fica claro que voltamos ao nosso primeiro questionamento: o que é a literatura? A resposta a essa pergunta está implícita em todo e qualquer projeto de ensino de literatura. É o que vemos, por exemplo, no filme mencionado. Quando um professor de história se aproxima de François — o professor de literatura do filme mencionado — e lhe propõe que façam coincidir interdisciplinarmente o estudo do Antigo Regime com a leitura de Voltaire nas aulas de francês, há uma assunção de proximidade entre literatura e história, ou seja, supõe-se que a literatura seja um discurso sobre o mundoaparentemente de acordo com o sugerido por Todorov. Não se questiona aqui: o Cândido de Voltaire é apenas um discurso a respeito de seu contexto histórico? O mundo da literatura é o mundo da história? Ou, para tentar nos aproximar da questão: a obra de Machado de Assis é apenas um estudo da situação política do Brasil de seu tempo? Seria, ainda, o Dom Casmurro o retrato da mulher oprimida pela sociedade patriarcal?

Tais discussões adiamos para um momento posterior. Cabe aqui apenas apontar isso: quando se decide por essa ou aquela abordagem de ensino, por menos visível ou consciente que seja, a escolha não é, porque não pode ser, isenta de um fundamento teórico de alguma ordem. Todorov parece não perceber isso quando centra a questão do ensino de literatura sobre a pergunta: “ao ensinar uma disciplina, a ênfase deve recair sobre a disciplina em si ou sobre seu objeto?” Ou seja, devemos estudar, em primeiro lugar, “os métodos de análiseou “as obras consideradas como essenciais?” (2009, p. 27). Decide-se pela segunda opção, como se o ensino de uma obra em si fosse possível. Ainda que critique a própria abordagem estruturalista, Todorov não percebe que cai na mesma ilusão de almejar acesso imparcial ao interior da obra, a seu esqueleto. A crítica que o autor faz, contudo, do ensino de metodologia, é sensível e, por isso, sem dúvida é sensata. Insuficiente, porém, e de uma ingenuidade que não se espera de um professor acerca de seu tema.

Do estruturalismo à sofística

A crítica do estruturalismo não pode ser apenas uma crítica ao estruturalismo, ou se resumiria ao abandono de certa tendência ou escola para a adoção de outra. Um procedimento assim é comum na academia: as chamadas modas, os teóricos da moda, a terminologia do momento, como se a superação da corrente anterior se desse por mera inovação terminológica e conceitual, como se não fosse necessário repensar os fundamentos da teoria anterior, e não simplesmente retomá-los e atualizá-los em novas formas. Criticar o estruturalismo precisa passar por, necessariamente, seu surgimento e as questões a ele relativas. Tentando responder que questões, indagações e inquietações seus fundamentos foram colocados pela primeira vez? E, a partir daí, em que medida tais fundamentos respondem apropriadamente ou não a tais questões? Finalmente, como esses primeiros encaminhamentos se desdobram no que, até hoje, nesse paradigma ou não, se passa entre os muros das salas de aula?

A escolha de livro paradidático de François é um tanto ambígua: O diário de Anne Frank. Por um lado, se aproxima do discurso historiográfico para tocar os alunos pelo que seria uma história realmente acontecida. Ao mesmo tempo, supõe que a protagonista do livro, por ser adolescente, toque os alunos de forma mais eficaz. Além disso, busca uma aproximação dos alunos com a obra quando, por exemplo, ao lerem a autodescrição de Anne Frank, pede que falem de si mesmos em uma redação dentro de um gênero formal, o “autorretrato”. O que parece um gesto de abertura e sensibilidade, no entanto, se tornou algo tão mecanizado — seja pelo hábito ou pelos parâmetros curriculares — que nem os alunos acreditam no interesse do professor por suas vidas. Suspeitam que seja um interesse fingido com a função de fazê-los escrever uma redação. É necessário pensar com o filme o quanto nossas atitudes de professores se enquadram ou não nesses esquemas, se deixam ou não mecanizar e dessensibilizar pela banalidade do hábito.

No caso de François, a atitude de um modo geral não nega a suspeita, que o interesse pelos alunos desponta apenas em momentos específicos da aula, com alocações de tempo, assuntos evitados e certa distância autoritária. Quando, por exemplo, logo na primeira aula, pede que os alunos escrevam seus nomes em um pedaço de papel e o coloquem sobre a carteira, eles levam um longo tempo colorindo seus nomes, enfeitando-os com figuras. A demora, no entanto, é malvista, e o que poderia se tornar uma discussão sobre identidade a partir de uma manifestação voluntária dos alunos se torna mais um momento de tensão e repressão, de pressa para que passem à próxima tarefa. Quando o assunto é a importância da educação, sua opinião fica clara em sua fala a respeito dos atrasos dos alunos: eles passam por uma formação cuja finalidade é proporcionar um lugar no mercado de trabalho. A razão das regras e leis é o funcionamento da sociedade. O texto que leem logo na primeira aula serve para que busquem palavras que não conhecem e expandam seu vocabulário, aprendam novos tempos verbais.

O que não se percebe é que não é a literatura que aqui é alvo de dissecação funcional. O que de fato se passa é que o homem — no caso, os alunos —, a literatura, a sociedade são todos compreendidos como estrutura, um sistema de formas e funções. De onde surge tal compreensão e como ela chega até nós nos dias de hoje? Na reflexão acerca dessas questões, percebemos: pensar o estruturalismo é necessariamente pensar o Ocidente em seu princípio — e não apenas o surgimento da ciência estética do Ocidente.

O estudo das formas, estilos, funções lingüísticas, figuras de estilo, efeitos estéticos: lugares comuns e bem aceitos quando se fala de literatura hoje em dia. Por que, no entanto, seu ensino nas escolas não aproxima os alunos da literatura? O modo como a obra literária escapa por entre seus dedos é algo de que se deveria, no mínimo, suspeitar. Tenta-se resolver tal incapacidade criando novas abordagens, mas nunca se pergunta em que medida tais abordagens mantêm os mesmos pressupostos anteriores. Os pressupostos datam de uma confusão tão antiga quanto o próprio estudo de literatura: a confusão feita entre poesia e retórica, devedora de dois fenômenos principais.

Os sofistas, literatura e discurso

O primeiro deles é o surgimento dos sofistas na Atenas democrática de Sócrates: os professores de retórica destinados a ensinar aos jovensdesde que bem remunerados — a arte da persuasão. A arte do bom discurso, a técnica no uso público da língua, a oratória era ensinada através da exploração dos recursos lingüísticos da língua grega e sua sonoridade — trabalho análogo ao dos mestres poetas, porém essencialmente diferente. As obras de Homero, Hesíodo, Píndaro, dentre outras, serviram de fonte e exemplo de como trabalhar a língua em prol do efeito, do convencimento, da emoção. A categorização da obra literária como efeito não nos é estranha: chega a nós através da própria estética. Em que medida a obra de arte se encaixa nessa categoria é algo que ainda se deve discutir.

De qualquer maneira, para os sofistas, a identidade entre literatura — e, é necessário esclarecer, o termo grego poiesis era abrangente o suficiente para abarcar a o verso, a prosa e o drama —, se não total, era no mínimo proveitosa, de modo que “transplantaram para a nova prosa artística, em que eram mestres, os vários gêneros de poesia parenética onde o elemento pedagógico se revelava com maior vigor” e, afinal, “a educação heroica da epopeia e da tragédia [foi] interpretada dum ponto de vista francamente utilitário” (Jaeger, 2001, p. 346). O ser utilitário aqui se dá de dois modos principais e inter-relacionados. O primeiro deles é o da função intratextual das formas literárias, compreendidas como partes da obra — um todo orgânico, sistêmico — relacionadas entre si.[1] Esse todo orgânico se relacionaria ao segundo sentido utilitário: a utilidade política extratextual dos conteúdos veiculados pelos textos, que passam a se relacionar às discussões relativas ao funcionamento da pólis grega. A relação entre as interpretações funcional-sistemáticas da obra de arte e da pólis é uma questão importante e relacionada ao nosso tema, sobretudo na medida que a interpretação da pólis como um sistema de funções, dominante nos dias de hoje, traz consigo uma compreensão sistemática do homem que a habita e de seu agir político. Por ora, no entanto, vamos nos ater à questão textual.

Os catálogos de funções e formas, vemos, não são sequer tão modernos quanto gostaríamos de crer. Protágoras falava dos tipos básicos de discurso: pedido, resposta, ordem etc (Guthrie, 1995, p. 205). A gramática dava então seus primeiros passos, funcional e, portanto, necessariamente prescritiva: era necessário aprender os melhores e mais eficazes meios de convencer. Qualquer semelhança com as aulas de redação ou faculdades de direito contemporâneas não é mera coincidência. A própria Universidade de Paris surgiu no séc. XII como instituição de ensino de gramática e retórica (Curtius, 1996, p. 91). Um estudo que pense a tradição francesa de pensamento à luz desse fato é algo por fazer: pensar em que medida o exercício retórico como mero exercício se tornou dominante para a prática e a teoria, sem compromisso com o pensamento, sem uma relação com o mundo, como gosta de dizer Todorov.

Coincidência ou não, hoje, na França, se tenta — e a iniciativa é das mais louváveis — “reabilitar” os escritos sofísticos. O que poderia se tornar uma redescoberta do pensamento naqueles até hoje rechaçados pela filosofia infelizmente, porém, apenas reforça o lugar-mais-que-comum a respeito dos sofistas: que defendiam o discurso pelo discurso, sem referência com o mundo. Ao tomar essa posição por dada, teóricos defendem o discurso pelo discurso, parece, tanto na teoria quanto na prática, e, para isso buscam envolver a filosofia também em tal prática, tratando, por exemplo, a questão do ser como uma construção discursiva, uma questão de gramática. Talvez um aprofundamento da questão da referência entre discurso e mundo, inclusive na tradução dos termos gregos que designam discurso e mundo, tornasse a tentativa mais interessante. Mantêm-se, contudo, os dois separados, como fazem todos aqueles que se pretende questionar, e com isso apenas se reforça e ratifica um lado de uma separação que, pelo contrário, é necessário se perguntar se os sofistas já enxergavam como separação. Transformar os mocinhos em vilões e os vilões em mocinhos é um exercício retórico interessante, mas não necessariamente pensante.

A França escolar de hoje — mas não só ela — também nos mostra aspectos interessantes do fenômeno. Um dos exercícios de François — inclusive durante o qual se passa um conflito violento entre os alunos, o ápice da tensão do filmeera a exposição oral de um ponto de vista por cada aluno frente à turma. No microcosmo da escola percebemos um fenômeno na verdade geral: a valorização da persuasão e do estar certo, do discurso superior — e isso se constata desde as brigas de trânsito às disputas entre partidos e entre as grandes potências econômicas e bélicas mundiais. A importância dada hoje à publicidade e ao marketing só evidencia como o discurso e a linguagem se tornaram meros instrumentos com finalidade de efeito de convencimento e no Senado brasileiro fala-se em “produzir a inocência” de certo senador envolvido em corrupção. Como aponta Rubem Alves, os cursos de oratórias proliferam, mas nunca se anunciado um curso de escutatória (1999, p. 65). A valorização da fala sobre a escuta, da persuasão sobre a sensibilidade, se não tem data de nascimento, tem época.

Em Atenas, uma das grandes questões debatidas entre os pensadores era: é possível ensinar a areté (a “virtude”)? Os sofistas de alguma maneira responderam que sim: é possível ensinar a areté política através da retórica. De modo muito prático, resolveram a complexa questão da areté através da inserção de um adjetivo, e o que era um fenômeno da vida humana como um todo em sua relação com a realidade se transformou em habilidade funcional de coerção e dominação. A tradução de areté por virtude e, mais modernamente, por excelência, já é conseqüência de tal resolução. A limitação de tal resposta é algo de que podemos suspeitar. As teorias de ensino e aprendizado contemporâneas apresentam uma aparência de evolução, de liberação das essências epistemológico-positivistas rumo a uma complexidade maior, mas dificilmente se debruçam sobre a pergunta inicial, desencadeadora do que se faz hoje, há tanto tempo esquecida. Os modelos, assim, se atropelam em um frenesi de superação — muitas vezes apenas terminológica —, mas uma verdadeira revolução não acontece, porque as questões da areté, da educação e do vínculo entre as duas se tomam por superadas teoricamente e/ou comprovadas cientificamente.

Voltando à revolução sofística, é complicado dizer se os sofistas atenienses consideravam seus discursos equivalentes à poesia, desprovida de seucaráter divino” (Curtius, 1996, p. 198). Ainda que o período em que viveram se distanciasse e muito de uma Grécia arcaica em que os mitos se apresentavam cotidianamente como potências da realidade circundante, a figura de Homero como pai da cultura e da educação não devia ser algo subestimável.

O mesmo não se pode dizer da segunda etapa do processo que se iniciou com o movimento sofista: a reinterpretação do helenismo em Roma, para onde se dirigiram os retóricos gregos quando da decadência da democracia ateniense. Por um lado, a vida política intensa romana deu forte estímulo à arte oratória. Por outro, “em contradição com a Grécia, colimava fins exclusivamente práticos” (Curtius, 1996, p. 103). Isso contribuiu enormemente para que a literatura passasse a ser considerada questão de mero gozo contemplativo (Curtius, 1996, p. 105) e sua materialidade um objeto do estudo funcional de como suas formas afetavam os sentimentos do ouvinte. O sistema da retórica torna-se assim o “denominador comum, a teoria e o acervo das formas da literatura” (Curtius, 1996, p. 109).

Se a retórica tocava as mentes, a poesia se tornou sua irmã destinada a tocar o coração do ouvinte, como meraespécie de eloqüência” (Curtius, 1996, p. 108). E a tradição desse falar da literatura chega aos dias de hojeainda que com outros nomes e estruturas aparentemente mais complexas — inquestionado. Muitas das tentativas de reaproximar literatura e pensamento ainda se dão sobre esse paradigma. Supõe-se que o poético se situe sobre os artifícios verbais. Como consequência, um ensaio ou uma tese poéticas são textos teóricos acrescidos — ou trabalhados — de certos efeitos retóricos, palavras novas e/ou exóticas, em suma: enfeites. Como nas teorias educacionais, cai-se em inovações no máximo terminológicas, em modas, e os fundamentos permanecem inquestionados, e, o que é pior, discuti-los se torna algo ultrapassado.

Fenômeno estético e experiência artística

A presença dos artifícios na literatura é algo que não se nega. No entanto, fossem eles sua origem, se faria literatura como se fazem cadeiras: uma vez conhecidos e dominados os procedimentos técnicos, qualquer um produziria literatura em série, automaticamente. Questionar o artifício não significa negá-lo, mas apontar suas limitações em relação ao brilho da literatura prévio a sua compreensão formalista. Qualquer estudioso de literatura reconhece que é, no fundo, sempre um amador, e sua experiência do fenômeno literário não se resume à estrutura da obra. Prévio ao estudo científico da obrasempre um motivo maior, chamem-no fascínio, afeto ou encantamento. Se a obra não nos tocasse de alguma forma, sequer poderíamos falar dela enquanto obra de arte. O que seria, então, esse brilho próprio da literatura? Aguardemos.

Como aponta Todorov, a compreensão da literatura como objeto formal e estético faz que com essa deixe de ter uma relação com o mundo, de ser uma forma de conhecimento, de “compreender melhor o homem com o mundo” (2009, p. 33). Essa compreensão atravessa a Idade Média e a Modernidade pelos caminhos da estética, seja em se tratando do trabalho do criador na geração do belo, seja da recepção do belo pelo leitor. Do autor para o leitor, contudo, ainda que pareça haver uma mudança significativa de perspectiva, mantém-se o pensamento na ordem do sujeito humano. A obra, logo, se torna mero dado objetivo, ainda que determinada e ordenada não mais pelo artista, mas pelo receptor.

Pensemos então a recepção com uma obra. A Guernica de Picasso, um exemplo consagrado e canônico de obra de arte. À primeira vista, o quadro nos surpreende com sua multiplicidade de figuras, chega a nos confundir. E não só à primeira, como à segunda e à terceira. O desnorteamento como que nos tira o chão de sob nossos pés — seja devido à própria violência das imagens, seja pela desordem com que se dispõe no mural.

Na seção longitudinal de braço e pescoço, na base do quadro, abre-se um negro onde haveria um osso ou recheio. Pelo negro de nossas pupilas, nos invade o vazio das partes humanas. Cheios de vazio a obra nos deixa: que sujeitos somos nós? Sujeito? Depois da Guernica, a toda afirmação segue-se necessariamente sua pergunta respectiva. Ao fim da frase, o ponto final negro, escuro. Sobre ele se eleva a espiral bailarina e vertiginosa da interrogação: “eu?”, como diz o personagem de Guimarães Rosa (1969, p. 57). Arrebatamento, curiosamente, não se esgota. Cada vislumbre da Guernica é uma nova vertigem, uma nova descoberta de um indiscernível que não pára de se discernir nas figuras pintadas.

A desordem nos toma e não compreendemos a Guernica, mas, seria mais apropriado dizer, somos por ela compreendidos, envoltos, e estamos em meio a braços, cabeças; ouvimos urro agonizante de cavalo. A desordem nos desmonta, e não sobra sujeito sequer para contar a história, para determinar, como receptor, a experiência do belo. Muito mais, a arte nos minou e indeterminou a segurança de nossos preceitos, de nossos critérios. Mais do que enfeites e efeitos, parece, há algo de substancial no acontecimento da arte.

Se a estética e a retórica não dão conta do fenômeno artístico-literário, qual seria a alternativa?

Considerá-la uma forma de conhecimento, diz Todorov, é restituir-lhe sua dignidade. Tal opção, contudo, foi mal interpretada anteriormente, quando a literatura foi colocada “a serviço de um projeto utópico, o da fabricação de uma sociedade nova e de um homem novo” (2009, p. 69). Foi, inclusive, tentando se distanciar dessas influências ideológicas que surgiu, recentemente, o estruturalismo. Sem perceber, porém, quão pouco inovador era ao manter uma compreensão estético-formal da obra de arte. E ainda gerou um absurdo sagazmente percebido por Todorov, que é pressuposto teórico

dos formalistas russos, dos estudos estilísticos ou “morfológicos” na Alemanha, dos discípulos de Mallarmé na França e dos seguidores do New Criticism nos Estados Unidos. Tudo se passa como se a recusa em ver a arte e a literatura subjugadas à ideologia acarretasse necessariamente a ruptura definitiva entre a literatura e o pensamento, entre a obra e o mundo (2009, p. 70).

Discurso e mundo

O engano, aqui — e sobre ele se situam tanto os defensores da literatura ideológica quanto os que a defendem descolada do mundo —, se localiza na interpretação do mundo como ideologia. Esse entendimento é usado seja para incluir a ideologia como mundo, seja para rechaçar o mundo como ideologia — e nisso não diferem em nada os estruturalistas dos pós-estruturalistas (Todorov, 2009, p. 40). Não se inclui, em instância alguma, o mundo como mundo. Pudera: o que é o mundo está sempre previamente decidido através de adjetivação (Castro, “Mundo”, 1; 3). Fala-se de mundo ideológico, mundo histórico, mundo social, mundo psicossocial, depois mundo biopsicossocial, e o adjetivo faz crescer na tentativa de corrigir o último engano, sem nunca voltar à real questão: o mundo.

Quando se pensa resolver o problema com o adjetivo, se toma o mundo como um dado pronto, um fundamento sólido e estável esperando uma classificação predicativa. Nunca se volta sobre o núcleo da questão e se pergunta: o que é o mundo? A não ser que se pergunte para em seguida oferecer a resposta previamente determinadora e adjetivante.

E tal adjetivação é popular: chama-se o mundo social, e temos a literatura falando da sociedade. Chama-se psicológico, e temos literatura falando de psicologia, e assim por diante. A possibilidade de que a literatura questione as concepções de mundo vigentes e traga consigo uma original passa despercebida.

Se mundo fosse um fundamento estático, contudo, estaria dele excluída toda possibilidade de mudança e seríamos todos seres petrificados em estruturas sociais imóveis. Que não somos petrificados é algo óbvio e que ninguém emconsciência contestaria. No entanto, a sistematização que atinge a tudo e a todosmundo, literatura/arte, homem — parece que nos faz esquecer disso. Apontar para o óbvio: talvez seja esse o trabalho do pensamento, especialmente em tempos em que as teorias, como óculos, nos iludem de antemão com a pretensão de fazer o mundo caber em conceitos. Talvez seja mostrar que sequer a possibilidade da almejada revolução proletária poderia ser pensada, não fosse o mundo um dado particípio inevitavelmente em tensão com um por-se-dar infinitivo.

François, nosso professor-herói, parece também não se dar conta disso. Sua metodologia aparentemente moderna e flexível não se desfaz da normatividade sistemática. Em seus encontros com professores, ele coloca em questão, o tempo todo, o rigor das regras extensivamente aplicadas sem considerar cada caso individualmente e tenta ver os alunos como seres humanos. Porém, sua postura frente à turma sequer se aproxima disso: sua atitude é impositiva e sua fala é de quem tem uma verdade a comunicar. Sem abertura para questionamentos, busca convencer os alunos de seu ponto de vista. Não é de se espantar que fique abismado quando as coisas saem do padrão esperado.

Esmeralda, uma aluna sagaz, porém um tanto desligada da sala de aula, no último dia do ano, diz que não aprendeu nada em francês, mas leu um livro que achou em casa com o qual aprendeu e do qual gostou muito: A república, de Platão. François, incrédulo, a questiona sobre o conteúdo do livro; a espontaneidade sequer tem espaço na pré-concepção do mundo escolar do professor. No entanto, é pelo mundo não ser apenas escolar, pronto, comportado e comportável em adjetivos é que os alunos surpreendem, que podem mudar e ser diferentes a cada dia.

O vínculo entre literatura e mundo, como vemos na própria transformação operada sobre Esmeralda, nunca se desfez. Persiste, no entanto, a pergunta: como pensá-lo? De alguma maneira, a toda vez que se enxerga um mundo adjetivado na literatura, é necessário que, ainda que obliterado pela concepção adjetivante, um mundo se tenha feito presente. Que mundo será esse? Como ele pode estar relacionado ao mundo e ao mesmo tempo ser um mundo novo? Ou será que tal pergunta tem cabimento se ainda tivermos em mente um mundo pronto, esperando para ser verbalmente representado?

Literatura e conhecimento

Todorov relaciona essa questão à verdade, que, para ele, é diferente na literatura e na ciência. Diz que a verdade da ciência é uma “verdade de correspondência ou adequaçãoentre uma proposição e os fatos que procura descrever. Como em “a água entra em ebulição a cem graus”, a proposição é mais verdadeira quanto mais adequada ao fato cientificamente observado (2009, pp. 63-4). , por exemplo, quando “Baudelaire diz que ‘o Poeta é semelhante ao príncipe das alturas’, é impossível proceder a uma verificação. Porém, Baudelaire não diz uma tolice, pois o que ele procura é nos revelar a identidade do poeta”, em uma “verdade de desvelamento, tentando pôr em evidência a natureza de um ser, de uma situação, de um mundo” (2009, pp. 64). Assim, a verdade da poesia se desvincularia de uma necessidade de verificação ao mesmo tempo em que colocaria em evidência a natureza de um ser.

Um olhar mais atento à questão levanta algumas suspeitas. Ainda que as definições façam uso de palavras diferentes, “adequar uma proposição a um fato” e “evidenciar a natureza de um sersão propostas próximas no que ligam a proposição, o dito, a algo externo a ele. Quando se espera que a frase de Baudelaire evidencie a natureza de um ser, ainda se espera sim que esta fale de algo que lhe é externo e, mesmo que apenas subjetiva ou sentimentalmente, é esperado algum tipo de verificabilidade. Podemos recorrer à ordem do metafórico, do alegórico, mas, a partir da proposta de Todorov, buscaremos, sim, algo na natureza do ser poeta que corresponda à proposição de Baudelaire.[2] Em outras palavras, Todorov mantém a verdade por correspondência ou adequação, aquela que espera de seu objeto algo como uma natureza ou um ser — pensados como uma essência interna, imutável, inteligível — existentes, compreensíveis e representáveis em uma proposição, ainda que de forma afetiva ou subjetiva. Fundamentalmente, não se pergunta ele o que seria a natureza de um ser a se evidenciar pelo poeta, se a natureza de um ser é algo de dado e pronto a se representar. Mais uma vez, o mundo permanece inquestionado.

Talvez um caminho possível se a partir das ideias de Richard Rorty, expostas por Todorov, segundo o qual a literatura é fundamentalmente uma experiência de encontro com outros indivíduos (Todorov, 2009, p. 80). Em tempos de fundamentalismos, parece uma alternativa interessante, com a qual ampliaríamos nossos horizontes, nossa compreensão de mundo, através do contato com diferentes personalidades e culturas. Acena aqui, no entanto, mais uma vez, o perigo de entender isso de uma maneira quantitativa, como uma acumulação de conhecimentos, à moda da ciência. Assim, com a literatura, teríamos acesso a cada vez mais alteridades e mundos e enfim ambicionaríamos uma espécie de conhecimento universal, enciclopédico, absoluto. Em que medida, porém, tal conhecimento se deslocaria do paradigma retórico e nos proporcionaria uma abertura real ao outro, uma arte da escutatória e não apenas uma curiosidade pelo exótico de uma diferença de aspecto, de aparência? Além disso, quem transita pela academiaou mesmo quem conhece professores, os alunos de François sendo nosso exemplo — sabe que nem sempre o mais erudito, o que acumulou mais conhecimento, é o mais aberto e compreensivo. Ainda mais questionável é se, em uma proposta desse tipo, não perderíamos de vista a questão do próprio da literatura ao torná-la equivalente a um discurso descritivo como o histórico ou o antropológico, que nos proporciona igualmente o contato com outras pessoas e culturas.

Ainda que com as boas intenções de compreender o outro, de abranger a cultura diferente, nada se fará enquanto não se pensar substantivamente o que é mundo, o que é alteridade. Apesar de fundamentais para qualquer compreensão de cultura, são sempre pressupostos: o primeiro como um fundamento — seja histórico, social, psicológico... — e a segunda como conjunto de características de um (ou alguns) ser(es) humano(s) — ficcional(is) ou nãodiferente(s) de mim. Embora se tente muitas vezes aumentar a quantidade de culturas como categorias em um esforço por abarcar as diferenças e especificidades, não se percebe que, se fossem assim tão cabíveis e separáveis nas gavetas conceituais, não se poderiam misturar. No entanto, se misturam: Esmeralda se entusiasma com Platão, nós nos enternecemos com o drama e as aventuras de Sherazade, nos arrasamos com a Guernicatodos distantes, se tomados por discursos de culturas distantes. Onde fica nossa proximidade? Nessas empresas de pensar a literatura como conhecimento, esquece-se da dimensão primeira da paixão, do entusiasmo, do arrebatamento, aquela coisa estranha que nos toma quando da leitura de um romance.

Da autoridade à alteridade

Uma coisa estranha, uma coisa outra: esses só se fazem presentes quando mundo é alteridade, não aqui entendida como caráter ou personalidade de outro que não sou eu. Mundo é alteridade porque, de algum modo, é verbo. Mundo é verbo em se fazendo, é verbo gerúndio e infinitivo. A alteridade — e sobre ela assenta a grande possibilidade de pensar uma arte da escutatória — é o veio escuro de mistério na Guernica, que compõe necessariamente a identidade, seja essa de um mundo ou de um homem.

O verbo do mundo, podemos chamá-lo dizer-se. Não porque se estabeleça conceitual e discursivamente, mas porque seu movimento manifesta sua própria presença na linguagem que lhe é própria. Em se instaurando, aponta para a incompletude de nós, leitores; nos arrebata ao mostrar possibilidades de mundo de outra forma inimagináveis, ou, melhor, ao nos mostrar o mundo como única possibilidade, como somente possibilidade. Alteridade em erupção, um fundar-se inesgotável que não permite fundamento, chão firme e sólido sobre o qual caminhem metodologias e pressupostos.

Parece aqui que não tratamos de nosso objeto inicial: o ensino de literatura. Apenas apresentamos abordagens possíveis — formal, estrutural, estética, histórica, social, ideológica, cultural. Tentamos localizar suas inadequações e impropriedades ao lidar com o objeto literário e, afinal, defendemos certo vínculo entre literatura e mundo: aquele no qual não se diferem, no qual literatura é realidade se apresentando em um devir exclusivo e intransferível.

OK, dirá o leitor, mas e então, o que eu faço com meus alunos agora? Quando eles me fizerem aquela pergunta lá da primeira página — “literatura, que isso?” —, o que eu respondo?

pode haver resposta pronta se literatura for objeto. quando se trata de vigor de obra desencadeadora de paixões, afetos, mundos, possibilidades, a literatura desfaz toda nossa metodologia e autoridade prévias e nos lança no abismo das questões, do não se saber mais, do descobrir-se sua própria alteridade. Autoridade de ensinar literatura, assim, não cabe. Muito mais vale um professor que largue a autoridade e abrace a alteridade, e partilhe o que antes de conhecer os alunos era partilhado: o não saber. E não se trata aqui, é claro, de admitir ignorância e adotar o mutismo silencioso e niilista. Abraçar o nada do abismo não é cair em niilismo, mas reconhecer que ele muito nos abraça, nos envolve em suas possibilidades de vir a ser. Formar leitores, na-não. É preciso que nos lembremos e debrucemos sobre a enigmática frase de Zaratustra: “Mais um século de leitores, e o próprio espírito terá mau odor” (Nietzsche, 2008, p. 58). O que se chama de leitores? É claro que literatura se pode e deve ler; porém, pode formar não leitores, mas mestres. Não os mestres sabidos de si, não os mestres que professam as verdades, mas os mestres do abismo que se sabem afinal também alunos do abismo. Aqueles que não dirão que literatura é isto, favor copiar, mas aqueles que olharão, com suas pupilas abissais, o não-fundo das pupilas abissais dos alunos e com eles se lançarão na única questão que a literatura pode sempre voltar a engendrar: “que isso?”

Areté e moral

É claro, não se trata de uma pergunta lançada de qualquer maneira. Trata-se antes de trazer à tona o espanto e as questões suscitadas pela literatura, os “que-issos” das coisas, de si próprios, sempre recolocados de maneira inaugural pela experiência artística. No nosso caso, voltamos, para pensar o ensino, à pergunta que, uma vez respondida, suscitou a educação como a conhecemos hoje: é possível ensinar a areté? No entanto, como Heidegger frequentemente faz questão de nos lembrar, muitas vezes o próprio modo de perguntar pelas coisas é algo a ser pensado, pois determina em grande medida as respostas às perguntas. Perguntar se é possível ensinar a areté pode nos fazer crer que a areté já seja algo resolvido e determinado, quando, de fato, não é. Cabe também sempre apontar: o fato de questionarmos o termo grego não se dá por mostra de erudição ou por predileção pelas línguas clássicas. A volta à palavra grega — e será bom se esse texto em alguma medida tiver deixado isso claro até aqui — é mais um esforço por compreender melhor uma decisão antiga que revolucionou nosso modo de pensar e ecoa fortemente ainda nos dias de hoje. Se nossas línguas modernas têm ou não palavra com a amplitude significativa de areté não é algo que nos cabe agora discutir. Certamente, porém, os termos similares que usamos cotidianamente para traduzi-la não dão conta de sua amplitude primeira, a partir da qual tanto se discutiu — e para atestar isso basta conferir as diferentes localizações textuais e propostas de tradução enumeradas por Liddel e Scott (1996, p. 238) ou ainda as diferentes aretés que guiaram as diversas paideias gregas com as quais temos contato na obra de Jaeger (2001). Considerar as possibilidades de tradução pode nos ajudar a pensar a areté, mas apenas ajudar. Por si só “a etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais” (Heidegger, 2002, p. 152).

Tendo em mente que não se trata de escolher um termo, mas de considerar as diferentes possibilidades de pensamento trazidas à tona pelas palavras, pensemos a primeira delas: virtude. É preciso atentar, porém, que a virtude grega não tinha, como para nós, a acepção “atenuada pelo uso puramente moral” (Jaeger, 2001, p. 25). Quando dizemos, por exemplo, que a paciência é uma virtude, assim como poderíamos dizer a caridade ou a bondade, nossas palavras já estão carregadas de uma herança da moral cristã possivelmente estranha à palavra grega, ou pelo menos questionável. Parece natural que tais traduções, adaptações e mudanças ligeiras de sentido ocorram, e não se pretende aqui simplesmente condená-las. Fazê-lo seria no mínimo ridículo. Em primeiro lugar, pretende-se pensar as limitações de tais significados em abarcar não só a ambigüidade original da palavra, mas também a ambigüidade original do fenômeno humano.

Quando se priorizam certos valores sobre outros, como ocorre quando se pensa a virtude como bondade, paciência e caridade, há que se considerar que tal concepção é em alguma medida normativa, pois exclui necessariamente aquilo que dela difere. Se pensarmos virtude(s) como um conjunto de valores — ou ainda de práticas ou comportamentos socialmente aprováveis —, os valores diferentes desses passarão a ser os não virtuosos, condenáveis. E é a partir da ilusão de se terem alcançado os ideais virtuosos que se produzem as normatividades, os modos de exclusão e dominação do diferente, e, mais radicalmente, os fundamentalismos de todo tipo. O próprio fato de já ao longo dos séculos da civilização grega o significado de areté ter se modificado aponta para a incapacidade de uma virtude moral, seja qual for seu tipo, dar conta das possibilidades e desempenhos humanos.

No entanto, se, como Jaeger nos aponta, a nossa carga moral moderna não deve ser atribuída à palavra grega, não podemos crer que nos livramos da moral — necessariamente prescritiva e excludente — ao enxergar na época heróica grega a areté relacionada ao “mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro” (2001, p. 25). Pensá-la como um ideal nobre, como valores aristocráticos dos guerreiros homéricos, na prática, equivale a tratá-la como bondade, paciência e caridade. Mudar — ou ainda inverter, que seja — os valores não faz com que deixem de ser valores e continuem limitados a modelos que, como todo modelo, são irrealizáveis e, logo, fadados à normatividade e exclusão do diferente. Mais uma vez, as possibilidade e desempenhos humanos ficam limitados — pelo menos em intenção — pela normatividade dos valores.

A possibilidade de os gregos já pensarem areté como modelo ideal — uma noção fortemente transmitida a nós pela teologia cristã baseada em um fundamento estável e transcendente (Deus) — é algo que se precisa repensar. Por um lado, sabemos que os deuses gregos eram deuses de mobilidade,[3] que sua palavra para natureza — ou realidade — não era substantiva, mas a brotação substantivante — ou substantivando, assim mesmo, no gerúndio — a que davam o nome de phýsis, e que sua verdade não era enclausurada em um mundo ideal, mas sim o movimento de auto-revelação da realidade a que chamavam alétheia. Por outro, porém, temos toda a concepção do mundo fundamentado em ideais transcendentes tratada em geral como herança de Platão — um grego! —, principalmente quando se fala do “Mito da caverna”, contido no “Livro VII” da República.[4]

Levando essas propriedades da língua grega em consideração, aprisionar Platão à gaiola conceitual do criador da cisão entre sensível e inteligível como chega hoje a nós é no mínimo complicado. A própria prática comum de atribuir conceitos a Platão já é algo questionável se considerarmos que não escreveu tratados, mas diálogos em que diferentes opiniões se colocavam em discussão e que com freqüência concluíam a inconclusão de que é preciso discutir mais a questão. Mais interessante e produtivo nos parece pensá-lo como aquele que colocou em discussão, dentre outras, a questão da educação, e retomar a discussão, como ele próprio nos recomenda fazer.

Pensar historicamente essa contradição ou paradoxo, para nós, é não se ater à sua descrição, mas também pensar de que modo ela se apresenta hoje, para nós, modernos — ou pós-modernos, como preferir o leitor —, para a nossa história em se fazendo hoje, ou seja: em que medida estamos nós também assentados sobre essa cisão, essa ambigüidade entre o que permanece e o que muda? Na areté, o que muda e o que permanece? A tentativa de responder à questão com base em uma cisão entre mundo ideal e mundo real, entre inteligível e sensível, se não é sua causa direta, certamente influenciou em muito a concepção moralizante da areté. Seu caráter normativo, porém, é uma limitação que nos mantém fadados à frustração. Talvez tenha sido em uma tentativa de se livrar do caráter normativo da moral que se tenha proposto a tradução de areté como excelência.

Areté e função

Excelência, em português, diz “qualidade do que é excelente; qualidade muito superior” (Houaiss, 2001). Se seguirmos a etimologia, vemos um pouco mais: do “latim excellere: elevar, erguer, levantar ao alto, elevar-se acima de, ser superior, sobrepujar”. A princípio, pode não trazer nenhum dado novo em relação à primeira tradução, como virtude, pois podemos pensar a excelência como a qualidade do que é mais adequado a preceitos e valores morais, sejam de qual época forem. Daí viria a elevação. Por outro lado, se pensarmos o elevar-se acima de, ser superior, já temos algo que permite uma comparação quantitativa, algum tipo de mensurabilidade. Se podemos pensar, por exemplo, nos heróis gregos como virtuosos de acordo com os preceitos do ideal cavaleiresco de sua época, por outro, podemos ver também que essa virtude se dava simultaneamente a uma excelência nas artes da cavalaria e do combate, por exemplo, necessária ao triunfo nas batalhas. É a esse significado que parece se aproximar Guthrie quando diz que a areté

podia ser qualificada como excelência numa realização ou numa arte particular. Assim como nós (e os gregos) falamos não só de homem bom, de bom corredor, de um pugilista, de bom carpinteiro, assim também areté, qualificada adequadamente, significava excelência ou proficiência nestas e em outras atividades” (1995, p. 235).

Como nos mostra Guthrie em seguida, esse tipo de perícia seria o mesmo de quando se fala da areté dos pés, dos cavalos ou ainda de objetos inanimados ou substâncias como o solo. É a partir daí que se pode dizer que a areté de cada coisa, sua excelência, é sua habilidade particular, como faz Protágoras no diálogo platônico que leva seu nome. Tentando convencer um Sócrates questionador da possibilidade de se ensinar a areté, cria um mito antropogônico. Nele, Zeus ordena que as virtudes da justiça e do respeito sejam repartidas entre os homens de modo igualitário, em contraste com a distribuição das “outras artes” (Platão, 322d). Vemos, assim, para citar apenas um trecho, que areté e téchne eram termos intercambiáveis, pois “significavam a mesma coisa” (Guthrie, 1995, p. 237) para Protágoras.

Tal confusão entre areté e téchne, é claro, é análoga e prima da confusão entre poética e retórica e, como ela, caríssima — em todos os sentidos — aos sofistas. É a partir dessa confusão, claramente favorecida pelo período democrático de Atenas em que todos podiam e se interessavam por participar da vida política — como hoje — que ele ganha seu papel na cidade. Ensinar a areté, com essa confusão, se tornou ensinar a téchne, ou, mais especificamente, a rhetoriké téchne, que traduzimos habitualmente como arte oratória. A areté se tornava, entendida como téchne, algo funcional, na medida em que proporcionava a seus possuidores, sucesso na vida política. Mas é preciso perguntar: serão elas a mesma coisa? Será a areté algo funcional? Se, por um lado, se confundem, por outro a existência de duas palavras nos faz suspeitar que designem coisas diferentes.

É também em Platão (República, 352d ss) que vemos um trecho que pode levar a um equívoco nesse sentido. Sócrates diz que só se pode ver com os olhos, e não com os ouvidos, que são responsáveis pela audição. Assim, pergunta a Trasímaco se concorda que se “a função de cada coisa não era aquilo que ela executava, ou só ela, ou melhor do que as outras”. A partir daí, pergunta se não tem também “uma virtude que lhe é própria tudo aquilo que está encarregado de uma função”. Poderíamos, assim, concluir que para Sócrates a habilidade técnica — a proficiência — e a areté também se equivalem, mas sua pergunta posterior à aquiescência de Trasímaco nos aponta outra coisa:

— Porventura os olhos cumpririam bem a sua função, se não tivessem a sua virtude própria, mas um defeito em vez dela?

— Como poderiam fazê-lo? — retorquiu. — Referes-te talvez à cegueira, em vez da vista.

—A virtude deles, seja qual for.

O próprio Sócrates, aqui, não se decide por o que seria a areté dos olhos ou ainda seu contrário, mas, se prestarmos atenção, sua função é posterior à areté. Sem a areté que lhe é própria, não é possível que desempenhe sua função. Mais ainda, a leitura da tradução para o português já é tendenciosa ao falar de função. Quando temos em português a conclusão que diz que, se a faca é o que corta muito bem a videira, é essa sua função (“Então não aceitaremos que é esta a sua função?”), temos, em grego, “ar' oun ou touto toutou ergon thêsomen;”. Prestando atenção à palavra ergon, podemos traduzir igualmente a frase por “Então não colocaremos que uma é obra da outra?” Dentre os múltiplos significados de ergon, temos o feito, atividade, propriedade, coisa, obra, não sendo função sequer o mais comum de seus significados. A função, como a pensamos habitualmente, de alguma maneira encerra a faca — ou os olhos, ou os pés ou os homens — a sua funcionalidade. Quando dizemos que cortar a videira é função da faca, já temos a faca como um instrumento de uso, fadado à funcionalidade. Tanto é que, quando perde o fio, a jogamos fora ou mandamos amolar.

Quando pensamos o corte da videira como obra da faca — e aqui o exemplo da faca é usado por Sócrates para chegar à areté e aos erga humanos —, a faca não se exaure no uso, mas muito mais atualiza uma possibilidade. Essa atualização, esse operar — daí a tradução de ergon por obra — só é possível, como nos diz Sócrates, pela areté. A areté, podemos assim pensar, é possibilidade dos desempenhos, muito mais do que uma técnica ou uma habilidade em função de uma utilidade. A areté é condição de os olhos enxergarem, de o ouvido ouvir, ou seja, de atualizarem suas possibilidades, de exercerem os desempenhos, as atividades que lhes são próprios.

Quando Sócrates fala da alma, portanto, precisamos repensar o que são a areté e as erga que lhe cabem, não como virtude e função — como se costuma traduzi-las —, mas como possibilidade e atualizações próprias a cada coisa, a cada pessoa. Não só para restituir a Platão a dignidade do pensador que até hoje nos faz refletir, mas, sobretudo, porque, como tentamos mostrar até aqui, tanto a compreensão moral quanto a funcional da areté restringem as possibilidades e os desempenhos humanos a certos limites.

Ensinar a areté

Assim, voltemos à nossa pergunta: é possível ensinar a areté? É possível ensinar a alguém suas próprias possibilidades de operar e se desenvolver? Sim e não. Em primeiro lugar, não: não podemos — ao interpretar a virtude seja como um conjunto de preceitos e valores seja como um saber técnico — ensinar a areté, pois ela se diferencia desses conteúdos ao possibilitá-los. Esses, sim, são ensináveis, porém, limitados.

Agora sim: sim, é possível ensinar a areté, mas para isso é preciso redimensionar o ensinar. Um ensinar que se proponha a despertar em cada um suas próprias possibilidades não se pauta por conteúdos. Despertar em cada um a ânsia de pesquisar que lhe seja caro, de desempenhar a atividade que lhe pareça cabível não se transmite como se transmite uma fórmula matemática. A paixão primeira, a curiosidade tanto de um Isaac Newton instigado pela maçã quanto a de um René Descartes pelo bloco de cera desponta muitas vezes de maneira inesperada, não depende de seguir receitas e métodos. A educação pela paixão de se encontrar e se descobrir, talvez, se instigue pelo questionamento trazido pela experiência do outrar-se. A alteridade da literatura nos levando a novos limites nunca antes percebidos, nos sujeitando e fazendo pensar outras possibilidades de mundo e de nós mesmos. O cuidado de si, de se achar atento à desmesura da própria medida, de seu próprio sentido, como nos diz o frag. 112 de Heráclito (1991), é a maior areté, ou, como a traduz Emmanuel Carneiro Leão, a maior coragem. Sejamos corajosos e enfrentemos a literatura, de peito e mente abertos ao que ela traz a nos instigar.


Referências

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VERNANT, Jean-Pierre. “A sociedade dos deuses”. In: Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Campello. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.



[1] A esse respeito, cabe conferir os apontamentos inovadores do texto “Mundo e Vocabulário”. Castro (2007) compara as diferentes traduções do trecho do Fedro em que se trata a obra de arte como um dzóion. As duas traduções assinaladas (como organismo ou como ser vivo) já evidenciam as diferentes posições possibilitadas pela ambigüidade fundamental sobre a qual se colocava Platão: a posição que desencadeou as ciências retórico-estéticas e a que desencadeou a poética.

[2] A respeito da popularização da alegoria para justificar a permanência da poesia grega e seus deuses pagãos em um mundo católico, bem como outros detalhes — e suas motivações — da grande mudança que se dá desde a Grécia até a Idade Média na compreensão de literatura podem ser encontrados no riquíssimo livro de Ernst Robert Curtius (1996), em especial nos capítulos “III — Literatura e educação”, “XIPoesia e filosofia” e “XIII — As Musas”. É preciso atentar, porém, que o autor, assim como Werner Jaeger, a despeito de seu profundo conhecimento sobre o tema, muitas vezes toma noções e conceitos emprestados tanto da Id. Média quanto da Modernidade na sua compreensão das palavras gregas. Algumas dessas, fundamentais, são virtude (areté), natureza (phýsis), verdade (alétheia), educação (paideía) e mundo (kósmos), a respeito de cuja tradução para o latim — e seus enormes e essenciais desdobramentos até os dias de hoje — se encontra reflexão vasta e profunda na obra de Martin Heidegger como um todo.

[3] A esse respeito, é sempre interessante ler o texto “A sociedade dos deuses”, de Jean-Pierre Vernant, a cujos apontamentos se devem diversas das reflexões aqui desenvolvidas, mas ao qual não nos referimos especificamente.

[4] O modo como Martin Heidegger interpreta o mito platônico da caverna em “Da essência da verdade” foi fundamental para que se almejassem as reflexões aqui apenas esboçadas de modo um tanto inconclusivo.