A tragédia[1] do comentário


Se não me engano, é em A ordem do discurso que Foucault comenta o modo como os comentários dos comentários dos comentários acabam por originar um discurso próprio, válido e verídico per se. Todo o trabalho de Heidegger, principalmente em relação à filosofia grega, mas também no que toca sua interpretação de modernos como Nietzsche, constitui um esforço nesse sentido, um sentido de busca de um sentido próprio, sem necessariamente eliminar o ruído que o distancia do pensamento original, mas de perceber o que diz um pensamento antes dos milênios — ou anos ou meses — de traduções e interpretações que o desviaram de seu cuidado primeiro.

Dois tipos de influências — como aquilo que flui de fora para dentro do texto — principais que nunca aparecem por si só na leitura, mas exercem pressões diferentes, nos parecem aqui relevantes. Um é aquele que busca os ecos da vida do autor em sua obra. Repercussões de um som primeiro, são de volume baixo, de difícil audição. Ainda assim, em maior ou menor volume estão o tempo todo ecoando de nossas paredes até nossos ouvidos sons e sons repetida e confusamente. Se procurarmos bem e nos concentrarmos na busca de um som — digamos que somos românticos e busquemos ecos do bater de asas de uma borboleta —, certamente o ouviremos. A borboleta, no entanto, não saberemos qual é, onde está, quando viveu. Talvez tenha estado na China de 500 a.C., talvez na minha janela. Ou, o que é pior: talvez sequer tenha existido e minha mente tenha criado um fantasma do eco que ouvi em virtude de minha expectativa e concentração.

O segundo tipo de influência, que afinal inclui o primeiro, é a distância do leitor a dificultar sua leitura. Não se trata de burrice, nem ousaríamos nós apontá-la se fosse o caso. Em tempos pós-modernos não se pode dizer que o rei está nu, pois, diz-se, tanto faz se o rei está nu ou não, o que o veste ou despe é a subjetividade do sujeito observador.[2] O mesmo se dá muitas vezes na leitura: o que diz o texto se perde com freqüência na recepção, que encaixa o que poderia haver de novo e surpreendente na leitura nos moldes receptivos do leitor.

Quanto a Sócrates e Platão, pelo menos naquilo que nos chega aos dias de hoje em alto e bom som, não se ouvem pesquisas de ecos de homossexualidade ou de etnocentrismo em suas filosofia. Não há dúvidas de que ambos estão presentes nos diálogos em menções esporádicas. O próprio encontro de Fedro e Sócrates no Fedro parece encenar o amor ao redor do qual circulam os discursos pelos dois trocados. Ainda assim, ninguém até hoje que eu saiba pretendeu condenar — ou, nos dias de hoje, mais politicamente corretos, diríamos reduzir — o pensamento de Platão a um discurso gay ou Nacional-helenista — partido que até hoje, salvo engano, não se almejou criar e esperamos que não se crie. Nosso texto, deixemos claro, não é a favor da hegemonia helênica nem incita movimentos de supremacia racial grega. Se um dia o partido for inventado, dispensamos direitos autorais. — Queremos atribuir o silêncio a respeito de tais temas à grandiosidade de sua obra, na qual outras questões a nós e provavelmente outros comentaristas nos parece(ra)m mais vitais e evidentes.

Dando agora uma ligeira corrida aos nossos tempos: se, no entanto, fôssemos leigos e verificássemos os comentários da filosofia do século XX por seus contemporâneos, chegaríamos provavelmente à conclusão de que os escritos de Martin Heidegger são de pouca relevância e abrangência em seus questionamentos. Nomes franceses da época, hoje em dia muito celebrados e adotados por acadêmicos, artistas e intelectuais sem patente, como é o caso de Derrida e Lacoue-Labarthe, dedicaram boa parte de suas obras a explorar a filosofia heideggeriana e sua ligação com o nazismo. Não é como se não tivessem dado atenção ao seu pensamento: toda a questão ontológica que Heidegger tem o mérito de retomar de maneira completamente original e fundadora fica evidente quando se fala, por exemplo, de différence e différance. É o que sabiamente aponta Giorgio Agamben em nota de Estâncias: “Assim como boa parte do pensamento francês contemporâneo, também o de Derrida tem seu fundamento, mais ou menos declarado, em Heidegger.”[3] Ainda assim, está sempre tudo mais ou menos declarado. Só se tematiza e explora explicitamente Heidegger quando se fala de — nazismo.

Em conseqüência e em paralelo a tal movimento se dá o contarem-se causos e acasos da história da filosofia. A figura do comentarista parece em nossos tempos ter se aproximado do comentarista esportivo e do colunista social — talvez pela coincidência do nome, talvez pelos títulos e posições acadêmicas dos fofoquistas —, e comentar pensamento se igualou em mérito a comentar o percurso de vida. Autores que ora se debruçam sobre a questão do humano e seus desdobramentos — e aqui não queremos questionar a propriedade de tal se debruçar e se ele não estaria causando certa tonteira de pensamento em quem se debruça — dedicam também seu tempo e sua tinta de caneta a escrever esse tipo de coisas, e nós nos debruçamos sobre esses escritos — talvez em busca de algum pensamento, talvez pelo sentimento de curiosidade semelhante ao que sentimos ao folhear a revista Caras.

Essa curiosidade pela banalidade não tem por si nada de condenável. Aliás, quem ousa condenar nesses tempos em que o ato de condenar parece ter sido tudo que restou de condenável? O que nos parece preocupante — e mais uma vez cedemos ao termo politicamente correto — é que tudo é publicado e considerado filosofia porque foi escrito por filósofos. E quem ousará dizer o que é e o que não é filosofia nos dias de hoje, em que nada se pode dizer que é e que não é porque vale tudo no terreno da subjetividade? Elizabeth Roudinesco, sobre Lacan — e não sobre seu pensamento, que faz suas aparições em seu texto apenas para ilustrar sua relação pessoal com Heidegger e Jean Beaufret —, narra:

Cuando Jean Beaufret se dirigió a la calle de Lille, se encontraba en un gran desaliento. Su amante, en cura con Lacan, acababa de abandonarlo. Lo había conocido un año antes durante una cena en la que, justamente, Lacan estaba presente con Sylvia. Después había tenido con él una breve relación a la que el amante puso término cuando se dio cuenta, durante el análisis, de que Lacan se interesaba un poco excesivamente en Beaufret. Más tarde, el amante dejó también, por lo demás, a su analista. La cura del filósofo empezó pues bajo los auspicios de un embrollo transferencial bastante extraño. Beaufret iba hacia Lacan porque era el analista de su amante, y Lacan dedicaba una atención particular a Beaufret debido a la relación privilegiada que éste mantenía con Heidegger.

(...)

Siete años más tarde [Lacan] envió a Heidegger sus Escritos con una dedicatoria. En una carta al psiquiatra Medard Boss, éste comentó el suceso con estas palabras: “Seguramente usted también ha recibido el grueso libro de Lacan (Écrits). Por mi parte, no logro por ahora leer nada en ese texto manifiestamente barroco. Me dicen que el libro provoca un remolino en París semejante al que suscitó antaño El ser y la nada de Sartre.” Unos meses más tarde, añadía: “Le envío adjunta una carta de Lacan. Me parece que el psiquiatra necesita un psiquiatra.” Ésa era pues la opinión que Heidegger tenía de Lacan...

Todavía una última vez, al enterarse de que el filósofo estaba enfermo, Lacan viajó a Friburgo, en compañía de Catherine Millot, para exponerle su teoría de los nudos. Habló abundantemente y Heidegger guardó silencio.[4]

Jornalistas competentes, raros ou não, existem. Curiosamente, os meios de publicação online facilitam que conheçamos a seriedade de seus trabalhos, ainda que não necessariamente lhes provejam de meios de subsistência razoáveis como o fariam publicações mais institucionalizadas, por assim dizer. Essas, aparentemente, têm cada vez menos espaço para jornalismo sério, pensado, responsável, e preferem ocupar suas páginas com celebridades, escândalos, tragédias. Mais curioso, no entanto, nos parece existirem espíritos que se disponham a escrever sobre essas banalidades. Não podemos aqui condená-los ou ainda dizer que são incompetentes que só sabem fazer isso. Até porque o jornalismo é outro desses terrenos livres em que ninguém ousa dizer o que cabe e o que não cabe — quanto menos em nossos dias em que o sujeito por pouco não resolve quando o sol há de nascer.[5] Sejamos generosos e pensemos apenas que, em tempos de Paris Hilton e Britney Spears, ser jornalista ficou um tanto mais fácil.



[1] Usamos aqui o itálico na tentativa de apontar o uso despreocupado do termo, que sempre traz consigo uma injustiça ao fenômeno trágico, cuja dimensão não pretendemos aqui abordar. Cabe apontar, no entanto, que não fomos nós os inventores do mau uso, nem seremos os últimos a fazê-lo, como se vê, por exemplo, nas recentes reflexões filosóficas a respeito de Auschwitz.


[2] Não é bem esse nosso ponto de vista. Acreditamos haver algo observável e verificável, para nosso horror ou deleite — afinal duas faces do espanto —, na nudez do rei. Nossos tempos, no entanto, não são de espanto; nada surpreende afinal a quem de antemão já sabe da nudez e dos dotes do rei.


[3] Agamben, Giorgio. Estâncias — A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 247.


[4] Roudinesco, Elizabeth. “Lacan - Esbozo de una vida, historia de un sistema de pensamiento”. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar/comentarios/roudinesco.htm , acessado em 09/12/2008.


[5] Cf. Buarque, Chico. “Apesar de você”. Canção do disco Apesar de você, 1970.

Os três lobos da estepe e a aprendizagem do mistério*

O romance O lobo da estepe, de Herman Hesse, chama a atenção em sua abordagem do homem e suas questões. Sem uma estrutura necessariamente conceitual, sistemática ou “filosófica”[1], nos leva a pensar vida e morte através do caminho percorrido por seu protagonista, Harry Haller. É apontado, inclusive, no prefácio de Ivo Barroso, que as iniciais coincidentes com as do autor seriam uma indicação de inspiração auto-biográfica. Hesse, escritor alemão, era filho de pais missionários protestantes que tinham pregado o cristianismo na Índia. As influências ocidentais cristãs e orientais indianas são presentes em sua obra e na busca de um pensamento próprio acerca das doutrinas morais e religiosas.

Não é esse, no entanto, nosso assunto de maior interesse. A submissão da obra à biografia do autor nos parece redutora das possibilidades de pensamento inauguradas pela leitura – um processo sempre singularíssimo. O que nos propomos a encaminhar aqui é uma interpretação da narrativa de Harry Haller e seus diferentes modos de encarar o homem e o lobo que vê constituir sua alma, considerados por nós o tema maior da obra. Barroso, em seu prefácio, propõe, a partir de uma consideração formal, ser O lobo da estepe um romance composto em três partes, baseado no fato de termos, a princípio, um “Prefácio do editor”, escrito por um rapaz da convivência do protagonista; o relato do próprio protagonista, que compõe a maior parte do romance; e, dentro deste, o “Manifesto do Lobo da Estepe”, um texto entregue por um desconhecido ao protagonista no meio da rua – chamado por Barroso de amostra de “surrealismo avant la lettre[2]. Segundo ele, comporiam os três textos as três visões do lobo da estepe dentro do livro.

Não é essa, no entanto, a perspectiva pela qual nos guiaremos aqui. Embora, formalmente, constituam três perspectivas diferentes, nosso foco aqui se dá nos três diferentes movimentos executados por Harry Haller enquanto narrador e crítico de sua própria história e seu pensamento. O primeiro, logo no início do livro, reflete o homem encarado como ser em sociedade. O segundo tem sua perspectiva ampliada à medida que considera o homem e a vida como experiência estética. Já o terceiro, em que Haller é levado a encontrar seu caminho de plenitude, consideramos a que pensa o homem e a realidade de um modo original e originário, na perspectiva do Teatro Mágico. Tal “lugar surrealista” é visitado no final do livro pelo protagonista que muda seu modo de encarar sua vida, seu homem e seu lobo. Mas serão apenas um homem e um lobo de que falamos aqui? De que se trata um lugar surrealista? Gostaríamos de desenvolver tais questões no momento adequado.

O lobo da estepe: o livro cuja leitura causou febres a Clarice Lispector; Harry Haller, o personagem marcado pela cisão, pelas cisões. Mas que são as cisões do personagem ou, ainda, quem é este personagem Harry Haller, cindido? A própria letra H, duas vezes em seu nome: as duas colunas, uma de cada lado, de alguma forma unidas pela haste horizontal. E os pilares do lobo da estepe, como se unem? Quais são eles, os pilares?

Podemos nos aproximar de Harry Haller? Cremos que sim e, para isso propomos três incursões. Pensamos: a que interior nos cursamos? O interior do livro? O de Harry Haller? O de nós mesmos? Talvez os três. Talvez o interior daquilo que, dos três, se identifica.

Como ler as cisões de Harry Haller e as nossas cisões? Fica claro que o que aqui buscamos, para além de uma discussão estético-formal de O lobo da estepe, é uma aproximação da obra enquanto se coloca a questão: como pode cada um de nós fazer a experiência de ser homem e ser lobo enquanto leitor, ou seja, de acompanhar o percurso de Harry Haller na descoberta de si mesmo e de nós mesmos? Há sempre a possibilidade de fazê-lo a cada vez que lemos e a cada novo leitor que abre o prefácio e se inicia nos mistérios lupinos. Ou será possível que não? Já não seríamos todos nós já iniciados no lobo porque homens? De certa forma, sim. Por outro lado, não. É preciso reiluminar o caminho que a obra desenvolve entre homem e lobo, mas de que forma? Se já nos tomarmos por sabedores do que é homem e do que é lobo antes mesmo da leitura, a obra não terá muito a nos revelar. A luz que ilumina a possibilidade da experiência inaugural da leitura surge justamente em nossa assunção: ainda não sabemos o que somos. Não é como se nos propuséssemos a delimitar as experiências; de maneira alguma. Muito mais, buscamos encaminhar a questão: o que é aquilo que é próprio tanto a nós quanto a Harry Haller, como homem – da modernidade? da civilização? – que nos cinde e nos dói?

Primeira incursão

Harry Haller está cindido: sua alma se divide entre homem e lobo. Implica: nós estamos cindidos. – Estamos? – poderá se perguntar algum leitor. Somos homens da civilização e, como tais, estamos obrigatoriamente cindidos, assim como Harry Haller. Temos em nós homem e lobo brigando pelo comando de nossos pensamentos e ações. Mas o que é essa cisão que a civilização nos impõe ou, melhor dizendo, em que momento ela se origina? Sabemos que o homem nem sempre viveu como vive hoje, nem sempre houve civilização como a conhecemos. Se voltarmos à idéia do homem primitivo, arcaico, podemos ter alguma visão diferenciada do que somos hoje.

O homem primitivo, aquele que vivia na natureza, não conhecia a civilização. Sua vida não era necessariamente guiada por princípios morais, regras ou leis, mas por suas chamadas necessidades vitais, seus instintos. Freud os esquematizava – e cabe aqui lembrar o perigo da simplificação esquematizadora da complexidade do homem – em Eros e Thanatos. Segundo ele, seriam, respectivamente, os instintos de procriação, união, prazer e amor e, do outro lado, os instintos de separação, destruição e agressividade. No homem primitivo, diz ele, tais instintos têm livre escopo de ação. No entanto, a partir de determinado momento, eles passam a ser cerceados pela vida social. De onde surgem os princípios, as regras e as leis da civilização? Para atender a que necessidades ela passa a ser parte da vida humana? Ou estaria nosso próprio modo de questionar comprometido com um pensamento que só compreende aquilo que se encaixa na relação de causa e conseqüência e seria a civilização também algo de natural? Posterguemos, por ora, essa questão.

O problema que a civilização aparentemente chega para resolver constitui o seguinte: o homem, na natureza, apesar de toda a liberdade, está à mercê das forças de destruição da natureza e, na forma de desastres naturais, tempestades, animais selvagens, e do impulso de destruição do próprio homem. Para Freud, nesse ponto, a civilização se origina das vantagens trazidas pela cooperação, o que se explica de modo muito simples: dois homens se protegem melhor do que um; a união faz a força. O homem, assim, se civiliza, na busca de proteção e conforto.

Harry Haller, por um lado, tende à civilização. Busca na pensão burguesa em que mora o “cheiro de calma, de ordem, de limpeza, de decência e de domesticidade”[3]. O quanto isso lhe custa? O quanto isso nos custa em nossa experiência de nos fazer Harry Haller? De quanto somos privados? Não podemos fazer livre uso daquilo que a natureza nos provém; não podemos agir entre homens sem obedecer a certas regras ou ao menos sofrer punições quando não as obedecemos. Seria Harry Haller um desses a quem a restrição fez com que lhes seja “difícil ser feliz nessa civilização”[4], porque, dividido entre lobo e homem, não alcança equilíbrio?

Daí o lobo da estepe: a metade de seu ser que Harry Haller chama de “animal selvagem, coberto apenas com um tênue verniz de civilização”[5]. Não constitui um lobo em pelo e osso e carne, mas aquela parte de si que se sente brutal, animalesca, selvagem, por oposição ao humano, polido, civilizado. Diz ele que sua alma alterna entre os dois estados, e, sempre que uma age, a segunda está à espreita exercendo críticas. O homem condena a brutalidade e a impetuosidade do lobo; o lobo faz pouco da acomodação e mediocridade do homem.

Dá-se aqui, no pensamento que a erudição de Harry Haller é capaz de conceber e da crise que a partir dele se orienta, uma relação semelhante àquela que vemos no filme Dança com lobos[6], em que o tenente americano John J. Dunbar, desenganado da civilização de seu tempo e da guerra, conhece uma vida de lobo da estepe quando fica sozinho em seu posto de vigia em território inóspito e trava contato com uma tribo de índios Sioux. Aparentemente, ele entra em contato com aquilo que há de mais natural e bruto em si ao se livrar da civilização. Nessa volta à natureza, se apaixona por uma mulher e teria mesmo sido feliz para sempre no reencontro de sua natureza, não fosse pela civilização em seu encalço: os oficiais americanos, na conquista do Oeste e a conseqüente expulsão dos povos nativos massacram a tribo em que estava vivendo Dunbar. Diz-nos, no entanto, o próprio “Manifesto do lobo da estepe”: “Com a volta à natureza, o homem vai sempre por um falso caminho[7]”; alienar-se daquilo que em si cheira a civilização é sempre esquecer-se de parte de algo que inalienavelmente constitui o homem: a recriação daquilo que a natureza lhe oferece, quer o chamemos civilização, cultura ou artificialidade.

É como se fôssemos todos divididos em dois: impulso e cerceamento, ou natureza e civilização. Sabemos, no entanto, que este modo de pensar está comprometido com o mesmo binarismo de divisões como bem e mal. Tal tipo de pensamento não só não se aplica a ente algum por menor que seja sua complexidade – dentre eles o homem–, mas também se engana ao pensar a civilização por oposição à natureza, quando na verdade – e não cansamos de nos esquecer disso – todo artifício humano, toda construção, todo homem, não vigora senão pelas possibilidades oferecidas pela própria natureza. Toma-se por certo o que são a civilização e a natureza como entidades distintas, deixando de lado a forte referência dinâmica existente entre as duas. O pobre homem, o dito homem natural e puro, fica assim privado de qualquer possibilidade de ação cultural, pessoal, social, já que essas seriam tomadas como entidades artificiais ao invés justamente daquilo que são: manifestações do próprio modo de ser do homem na realidade.

Nossa problema se arraiga ainda mais profundamente do que pensamos: na raiz de nossa língua. O que está por trás de nossa visão dicotômica de natureza e civilização se torna claro quando a comparamos ao modo de pensar de uma língua antiga como a grega, cujo pensamento antecede as variadas prioridades utilitárias que deram origem às nossas línguas modernas. O que em grego se traduziu por natura em latim – nos textos literários, filosóficos e quais outros de fundamental importância na construção do modo de pensar de uma época, de um povo, de um homem – se dizia em grego phýsis. Quando temos consciência de que o que se apropriou do povo grego pelos romanos não foi apenas um empréstimo, mas também “uma remodelação[8]” causada pela transposição de palavras vinculadas a todo um modo de pensar direcionado a objetivos próprios, ficamos igualmente surpresos ao constatar que phýsis não contém qualquer oposição à civilização, assim como pólis, a cidade – aquela de que Platão fala em seu diálogo mais famoso que chamamos República –, não é o contrário de natureza. Que fazer, então, da cisão de Harry Haller? Como aproximar homem e lobo sem perder de vista o caráter tensional e nunca dicotômico da realidade? Sabemos e mantemos: os dois pilares da letra H se aproximam. Podemos dizer, porém, que se fundem e sintetizam? Certamente não; isso seria a eliminação da diferença fundamental no diálogo constituinte da realidade de Harry Haller, do homem, da realidade. Há que se pensar, no entanto: que são os pilares do H?

Segunda incursão

Vimos na primeira incursão que o pensamento que divide Harry Haller entre natural e civilizado, bruto e polido, não é suficiente nem para ele, que permanece frustrado com as próprias limitações da bipartição em que sistematizou sua alma, nem para nós, que o percebemos problemático à medida que se fundamenta em uma divisão ilegítima, a saber, aquela proposta entre natureza civilização. Como então encaminhar as questões do homem Harry Haller, as nossas questões?

A partir de certo momento do romance, vemos que sua dor é de outra ordem. Isso fica mais patente no trecho do “Manifesto do lobo da estepe”, um ensaio a respeito de Harry Haller, seu pensamento, seus problemas. Contudo, se prestarmos atenção, veremos que esse modo de pensar já é sinalizado em momentos anteriores, em que chega a se confundir com aquele desenvolvido em nossa primeira incursão. Aponta ele uma divisão diversa da que vimos anteriormente: aquela existente entre divisão e fusão.

A dor de Harry Haller não é mais a dor do homem mascarado pela civilização de seus instintos, mas a dor daquele, uma vez tendo feito a experiência transcendental de fusão com o uno primordial, sofre de nostalgia desta. Mas nostalgia do quê? Que experiência é essa? Em nosso auxílio vem o pensador que diz que é “a arte – e não a moral – (...) a atividade propriamente metafísica do homem”, e que “a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético”[9]. Não se trata aqui, no entanto, da idéia da experiência estética de mera fruição do belo como um conjunto de características ou conceitos universais geradores de prazer. Harry Haller se diz experienciar “grandes comoções, grandes dádivas, que me transportavam a mim, o extraviado, de volta ao vivo coração do mundo”[10] ao ouvir um concerto de música antiga, ler poesia, meditar sobre Descartes. Esse achado do “trilho de Deus em meio à vida que levamos[11]” se relaciona fundamentalmente ao pensamento que fala de nossa experienciação de mundo – ainda justificado como fenômeno estético – na alternância de dois impulsos: o apolíneo e o dionisíaco.

Apolo, aqui, é o deus da experiência do “homem colhido no véu de Maia (...), apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]”[12]. Trata-se daquilo que nos torna entidades diferentes, pessoas diferentes, na chamada ilusão da realidade em que vivemos. Essa individuação, no entanto, diz-se dolorosa para o homem, que, de alguma forma, intui que é parte e não todo, que há a possibilidade da transcendência da chamada ilusão aparente em direção à fonte primordial, à origem essencial do mundo. Essa saudade da indiferenciação e da dissolução com o infinito originário se suspenderia nos momentos de experiência estética, como os de Harry Haller, em que o homem

é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas configurações, parece sofrer uma exceção. Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco[13].

O pensamento de Nietzsche parece intuir algo de novo: a presença – ou o fazer-se presença – de uma força para além da realidade mundana, cotidiana, tal qual o homem a experiencia. Mais do que isso, ele aponta para a possibilidade de o homem, através da arte, alcançar um ultrapassar da medida e da limitação da aparência individual no auto-esquecimento do estado dionisíaco em que o desmedido se revela como “a verdade, a contradição”[14], a própria união com o Uno-primordial. É a possibilidade de abandono de tudo aquilo que soa como aparência de individualidade na direção do êxtase da dissolução com aquilo que transcende nossa limitada experiência humana de indivíduo. Seria, no entanto, nossa experiência humana necessariamente algo de limitado? Ainda não nos encontramos em momento propício ao desenvolvimento dessa questão. Continuemos, por ora, nossa exposição.

Nietzsche aponta o mito do rei Midas, que, ao perguntar a Sileno qual dentre as coisas era a melhor e mais preferível para o homem, ouve: “O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”[15]. Pensamento semelhante é o de Harry Haller: inclui-se a si mesmo na “classe dos suicidas”, os homens que, mesmo que talvez nunca chegassem a se matar, tinham sempre na perspectiva – e opção – da morte a melhor saída do doloroso mundo da individuação, em que não mais se pode escolher não ter nascido quando já se é vivo. Mas o que seria esse nada ser apontado por Nietzsche? Que lugar é esse onde vige o nada? A própria idéia nos parece estranha, a idéia de haver um lugar em que encontraríamos o nada desse uno primordial. Ora pois: se algo já é um lugar, certamente deixou de ser nada. Onde se encontra esse nada para que não deixe de ser nada? Ou, ainda, é possível o nada manter seu caráter de nada e estar em algum lugar? Nietzsche nos aponta, no entanto, que é o próprio nada essa distante origem com a qual nós, homens, buscamos fusão. Pensemos em estar no nada. Pronto, estamos lá e ele deixou de ser nada. Todavia, é ele a origem de toda nossa “aparente” realidade. Onde está ele então?

O nada não pode ser um lugar ou um nada deslocado. Essa origem descrita através da polaridade dionisíaco e apolíneo, por mais que o tente evitar, não consegue se dissociar do pensamento metafísico cristão do Deus criador que, após criar o universo, descansou no sétimo dia. Esse Deus só é possível num mundo em que as coisas se encontram prontas e acabadas, em que nada muda, em que nada se relaciona, em que nada se cria. A origem não pode descansar no sétimo dia, a não ser que a realidade deixe de ser dinâmica, e sabemos que ela não o é. O nada, como origem, não é um outro lugar nem é a soma de tudo, mas é aquilo que, em cada ente – e não só nos homens – vige como condição de possibilidade da mudança, das relações, da criação.

Harry Haller, porém, segue vivendo, como se encontrasse a justificativa de sua vida miserável nos momentos de entrega ao dionisíaco, em que a natureza soluça “por seu despedaçamento em indivíduos”[16]. É nesses momentos, em que lobo e homem parecem se harmonizar na dissolução de suas fronteiras, que encontra Harry sua provisória paz. No entanto, há muito que se questionar. A natureza, ou ainda, se desconsiderarmos a problemática do próprio termo, a realidade, pode ser meramente uma instituição despedaçada em constituintes indivíduos? Seria a realidade total mera soma de suas partes (individuais, sofridas...)? Qualquer um que observar o brotar de uma flor, o germinar de um grão, o crescimento da barriga da mulher grávida ou da loba prenhe terá nestes a prova irrefutável de que a soma dos entes pensados estaticamente não resulta na realidade. A própria admissão da possibilidade de um Uno-primordial por Nietzsche já indica que seu pensamento se encaminha para isso. Contudo, ao localizá-la na experiência artística, exclui-se toda a força de possibilização de movimento das experiência humana não-artísticas, sejam elas o trabalho, o cálculo, a alimentação, a caminhada matinal no calçadão da praia.

A operação da obra de arte sobre nós é algo inegável. Talvez ela guarde resquícios fortíssimos daquilo que um dia foi nossa experiência do divino cotidiano ao nosso redor prévia ao deslocamento que colocou Deus no céu e nós na Terra e dividiu a realidade entre aparente e essencial. Essa experiência, contudo, parece perdida e esquecida para grande parte de nós na maior parte do tempo. Platão já parece tê-la esquecido ao expulsar os poetas da cidade ideal, em que a transcendência da aparência em prol do alcance das idéias só era possível através do inteligível, cognitivo. Transferir a experiência da transcendência do inteligível para o estético, no entanto, ainda que um movimento generoso e uma grande investida na tentativa de se lembrar da poderosa fonte inesgotável que foi deixada para trás quando Deus sentou para descansar, é apenas uma inversão um tanto pirracenta. Apesar de deslocar o foco e inverter a valoração de arte e pensamento já tão arraigada em nosso modo de pensar, não atenta ela para a dinâmica entre arte e pensamento, e, ainda de modo mais grave, mantém o Deus, o nada, a origem, descansando no sétimo dia, distante da realidade que, nesse modo de pensar, não deixa de ser aparência por oposição à essência.

A força misteriosa que habita aí – no constante renovar-se – não se trata de um princípio transcendente alcançado em momentos específicos, mas da motivação da pergunta que dicotomia nenhuma sabe responder: o que é isso de onde, ainda que não cesse de porvir, nunca se esgota o brotar? O próprio Harry Haller nos mostra isso em seu “Manifesto do lobo da estepe”: “Pois não há um único ser humano, nem mesmo o negro primitivo, nem mesmo os idiotas, que possa ser explicado como a soma de dois ou três elementos principais”[17]. Mais que isso, é possível questionar: que Uno-primordial é esse que se alcança em uma ou outra experiências mas, quase sempre, encontra-se desvinculado de nossa experiência humana cotidiana da realidade? Se o permanente brotar – no homem ou não – tem origem nesse Uno-originário, como pode ser que esse só se faça presente sob certas condições, mas, de um modo geral, não seja perceptível pela maioria dos mortais na realidade à sua volta? Haveria então uma seção estática e outra dinâmica na realidade? Assim fosse, teríamos, de um lado, pedras, montanhas e tudo aquilo que chamamos de firme e imutável e, de outro, plantas, animais, homens, aqueles que nos habituamos chamar seres-vivos sujeitos ao movimento de vida e morte, criação e destruição? Alguma das duas é tão dinâmica que independa das outras em seu movimentar-se? Alguma das duas é tão firme que resistisse impassível a séculos de ação de tempestades, tornados e terremotos?

Terceira incursão

Aproximamo-nos afinal do último momento de nosso ensaio: aquele em que esperamos concluir nossas idéias e definir nossos caminhos. Talvez – e é aí que devemos depositar nossas esperanças – nos frustremos nesse propósito. A entrada de Harry Haller – e também a nossa – no Teatro Mágico está mais próxima a cada palavra. Isso não se faz, no entanto, sem alguma preparação.

Já passamos por dois momentos: o primeiro deles desenvolveu a posição de Harry Haller entre natureza e civilização, impulso e frustração. Rebatemo-lo ao perceber que a divisão é artificial, tributária de um pensar pouco cuidadoso. Pode-se opor aqui, no entanto, quem perguntar: mas qual o problema de uma divisão artificial quando se questiona justamente o pensamento que separa o artifício da natureza? A resposta se esconde no segundo momento de nosso texto: não há nada tão simples que se reduza à mera soma de dois elementos

Nossa divisão bipolar entre natureza e civilização só pode ser seriamente considerada se tentarmos não as ver como conceitos estanques. É necessário dinamizá-las e aproximá-las, do mesmo modo que busca Harry Haller fazer. Mas como livrar da poeira duas palavras por tanto tempo mantidas em estaticidade no nosso pensamento? O modo dinâmico da língua grega, originária na medida em que pensa a realidade no movimento de criação e destruição, presença e ausência, desvelar e velar, nos aponta um caminho. Diz ela: phýsis e pólis, como mencionamos anteriormente. Pouco teríamos a aprender, porém, a partir da mera exposição dessas palavras.

Phýsis não é simplesmente o lugar onde não mora o homem, por oposição à cidade. Não é o lugar dos perigos, das ameaças do desconhecido. A palavra fala do próprio modo de agir do real, o movimento de constante brotar da origem que nunca se esgota. A partir daí, vemos que não está ela distante do homem civilizado, mas sim agindo nele e com ele enquanto é ele mesmo processo de recriação e descobrimento de si próprio.

Pólis, por outro lado, é “o pólos, o pólo, o lugar ao redor do qual cada coisa que aparece para os gregos como um ente gira de um modo peculiar”[18]. Desse modo, antes de ser res publica, a coisa que serve os interesses do povo, do homem, com suas estruturas legais e políticas ­na forma em que os romanos as desenvolveram e se apresentam a nós nos estados modernamente constituídos, era ela o lugar de acontecimento e surgimento em que homem e natureza não somente co-habitam, porque não se distinguem, já que ele dela faz parte. Antes de ser civilização, dominação, coerção, a pólis é o pólo em que convergem os descobrimentos da phýsis na própria história do homem. A maneira como se separaram esse pólo em que os desvelamentos de homem e natureza convergem e a fonte do desvelar-se é o próprio modo em que se formou a bipolaridade de nosso pensamento contemporâneo sobre nós mesmos e a realidade.

Parece aqui que nos afastamos de Harry Haller e sua experiência ao nos deslocarmos a colocações sobre o pensamento grego. Qual a contribuição que estas têm a fazer em nossa compreensão de O lobo da estepe? A mútua referência existente entre phýsis e pólis é a mesma mostrada a Harry Haller quando lhe dizem que não há dois Harrys entre lobo e homem, mas múltiplos. A possibilidade da multiplicidade é a própria doação da realidade em seu dinâmico brotar que se coloca nas relações do homem com a realidade, de homem com homem, de coisa com coisa, que não se encaixa em estruturas binárias pré-estabelecidas porque não é estruturado. Mas de onde vem esse brotar eterno? Não desistamos ainda: o que acontece aqui é nossa preparação para entrada no Teatro Mágico. Não cabe aqui, contudo, criar esperanças elevadas. É bom saber desde já que, uma vez lá, nada encontraremos, e esse nada é justamente a substância do Teatro Mágico.

Sem precipitação, voltemos: a divisão natureza-civilização acaba de ser por nós, se não abandonada, ao menos repensada. Como fazer o mesmo com os princípios dionisíaco e apolíneo? Já aprendemos que os binarismos são simplificadores. Mas o que simplifica essa divisão? A idéia de opor a dissolução com o uno-primordial à diferenciação do indivíduo se firma sobre solos pouco firmes quando nos lembramos do constante surgir da realidade. Como pode o uno-originário, a origem perene, ser algo distante e inaccessível se o sentimos agir sobre nós a cada instante de mudança, reinvenção, e abandono de nós mesmos? Como podemos abandonar esse binarismo estético e nos encaminharmos ao Teatro Mágico? Talvez seja necessário passar por uma preparação tal qual fez Harry Haller.

No dia em que recebe o “Manifesto do lobo da estepe”, vê Harry em uma parede de pedra um letreiro colorido de difícil leitura, que diz: “Teatro Mágico, entrada só para os raros, só para os raros, só para loucos”[19]. Algum tempo depois, conhece Hermínia, a bela garota que constitui sua aparente salvação. No entanto, ela lhe avisa que ele terá que se apaixonar por ela para por fim matá-la[20], pois ela, como um espelho dele, também deseja a morte, também é insatisfeita, também é infeliz. Harry aceita o pedido mais pelo interesse em Hermínia do que pelo apreço pela idéia. Pergunta-se, no entanto, em meio à sua angústia e ansiedade, se afinal ela o ensinará a viver ou a morrer[21]. Não chega de fato a se resolver entre um e outro. Pouco entende ele que a experiência da vida não nega a experiência da morte, mas nela se encontra entranhada. Aprenderá mais tarde o quanto de si é necessário deixar que morra para poder mais uma vez – e mais uma vez e infinitas vezes – ressurgir.

Hermínia, seu elo com o mundo do qual se sente desconectado, o conduz por uma espécie de educação. Quer que Harry aprenda a dançar, ouvir música em gramofones e apreciar uma série de coisas que ele considera modernosas e detestáveis. Junto a ela, aparecem as figuras de Maria, a bela prostituta que seduz Harry sob orientação de Hermínia, e Pablo, o saxofonista que o fará repensar o que entende por música.

Aos poucos, descobre ele que ainda é possível amar, e se entrega a Maria, sem perder de vista, contudo, que afinal será de Hermínia. Pablo, por outro lado, quase sempre se nega a discutir música com Harry, e, quando o faz, critica seu ponto de vista por o considerar excessivamente teórico e distanciador da música ela mesma. Pablo nos traz a possibilidade de vivência da música não como conjunto de técnicas e estruturas analisáveis, objeto de estudo, classificação e juízo. O que Harry aos poucos percebe é que a música – seja ela jazz ou Beethoven, ao vivo ou em gramofone –, é movimento junto do qual o homem se revela em suas possibilidades. A dança, que aos poucos treina com Maria e Hermínia, tira-o da vida contemplativa e erudita e o joga no turbilhão do apropriar-se daquilo que se lhe apresenta no constante movimento de doação da phýsis. Ao dançar, Harry consegue se livrar de seus preconceitos, suas etiquetas, para vivenciar o vigor de silêncio e som da música e de si mesmo em estaticidade e movimento.

Temos aqui a composição da tríade que o acompanha até o final do romance: Maria, Pablo e Hermínia. Maria lhe mostra as possibilidades da paixão, Pablo lhe mostra como a música, além de objeto de estudo, é algo com o qual e no qual acontece o homem na manifestação de seu próprio ser poético. Hermínia ensina-lhe as possibilidades do amor, da arte (na dança) e da morte. Mas o que são estas três dimensões?

Harry Haller, rabugento, não admite se apaixonar; acha-se velho. Ao mesmo tempo, tem ojeriza pela música de seu tempo, recusando-se a ouvir qualquer coisa diferente de seus ídolos da música erudita. Hermínia conjuga essas duas experiência e às duas adiciona a experiência fundamental da morte. O que essa morte diz, no entanto, é algo diferente da morte final com a qual estamos habituados a pensar. A morte, como Harry Haller a está descobrindo, é a experiência humana que, inseparável da possibilidade de criação e surgimento, nos conduz ao morrer, ao esquecer, ao se distanciar do que deixa de nos ser próprio.

Essas três dimensões se reúnem em duas para afinal serem uma só. As aprendizagens de Harry Haller sobre amor e sobre arte são a mesma, ainda que se direcionem a coisas diversas: é a aprendizagem do reconhecer-se e reconhecer, em cada ente – seja ele humano ou não – a infinita possibilidade do mútuo pertencer e apropriar-se em que observador e observado ou amante e amado não são sujeito e objeto, mas participantes do mútuo descobrir-se e desvelar-se na incessante dinâmica em que se doam as possibilidades de cada um vir a ser o que é. E essas possibilidades, aqui, não são proporcionadas por uma entidade divina ou um uno-primordial distanciado, mas pelo próprio movimento que cada um de nós faz de viver na tensão entre o que se é e o que não se é enquanto negatividade criadora. A aprendizagem da morte, por outro lado, é aquilo que, junto com a dinamicidade do desabrochar inesgotável, nos introduz no mistério do murchar, do perder, do abdicar. Não é necessariamente o negativo que devemos evitar, até porque inevitável; trata-se, antes, do natural enrugar-se de nossa pele, esquecer-se do passado, deixar para trás o que não mais faz parte de nós – mas que pode sempre voltar a ser, porque dinâmico.

Essas duas aprendizagens – do brotar e do murchar, do desvelar e do velar, do descobrir e do cobrir – se reúnem na aprendizagem do mistério: aquilo que, em habitando cada ente – homem ou coisa – não o habita. Não o habita porque ainda não é e não o habita porque já deixou de ser. Aqui, passado e futuro deixam de ser dimensões lineares, mas os movimentos do real dando-se e retraindo-se simultaneamente. Trata-se, propriamente, do ser e não-ser do qual tomamos consciência na medida em que percebemos o real – e nós dentro dele e como ele – em seus movimentos da vida que não se opõe à morte, mas se encontra no intenso vir a ser e deixar de ser próprio a tudo que é real.

Harry Haller adentra o Teatro Mágico, o “lugar surreal”, como o chama Ivo Barroso. Pensemos: o que é surreal? Seria aquilo que se caracteriza por se encontrar acima do real, além do real. É algo semelhante ao que chamamos de sobrenatural, no sentido de algo que extrapola os limites da nossa realidade. Tal definição só se sustenta se a nossa realidade tiver limites, se pensarmos o real como algo pronto, em que tudo já se encontra dado e finalizado, garantido em seus limites, objetificado pelo rigor analítico ou científico. Escutando atentamente os apelos do real ao nosso redor, percebemos que essa delimitação se esquece do caráter renovador do real, que inclui sempre não só o que já é, o já realizado, mas também o que virá a ser e ainda o que nunca virá a ser: a origem, o mistério eles mesmos.

A partir do momento em que adentramos essa nova compreensão do real que, aliás, não o compreende, porque se dispõe a enxergar o incompreensível do mistério, podemos nos livrar de conceitos de surrealidade. A realidade em si contém o surreal porque não se prende aos parâmetros nos quais a estaticidade de nosso pensamento a pretende enquadrar. O Teatro Mágico, justamente, é o lugar em que Harry Haller aprenderá a se envolver na doação da vida a seu redor que nunca cessa de lhe proporcionar nova experiência, porque é sempre vida nova.

Uma vez no Teatro Mágico, que,aparentemente, não é mais do que um teatro em formato de ferradura, Pablo lhe mostra um espelho em que aprende a se desligar do lobo da estepe, o aparente superego repressor, ainda que temporariamente, ao enxergar uma multiplicidade de Harrys. Ele se vê jovem, velho, feliz, triste...: milhares de imagens de si no mesmo espelho simultaneamente. Ao se livrar da dicotomia, aprende Harry a multiplicidade de seu próprio ser, que não é apenas dois, mas múltiplos, porque carrega consigo tudo aquilo que ele já foi e bem como tudo o que pode vir a ser. Como podemos nós aprendê-lo?

Não temos aqui um caso de esquizofrenia. O homem multiplicado não é apenas uma série de Harrys, mas a imagem-questão que questiona: quantos eus posso ser? Será isso algo da ordem do contável? Serei eu apenas dois? Sabemos que não: O Teatro Mágico, o lugar onde Harry e nós nos deparamos com inúmeros eus, inúmeras portas, inúmeros caminhos de auto-descobrimento de si mesmo junto às infindas possibilidades da realidade, é indicador, em primeiro lugar, da presentificação e apropriação que Harry faz de seu passado tornado presente. Ao entrar em portas em que experiencia a guerra ou os amores de sua vida, toma consciência da dinamicidade através da qual seu passado, ainda que esquecido e latente, faz parte de si e é algo do qual não pode se desvincular, pois, ao tornar-se presente na memória, modifica o que ele atualmente é. Além disso, ao se olhar nos espelhos, os múltiplos Harrys que logo depois se tornam peças de xadrez dadas à incontável reorganização, vemos que Harry não é nem dois nem um que decide subjetivamente sua vida, mas o homem habitante do teatro como aquilo que compreendemos na etimologia como a presença de Theá, a deusa, a divindade. Aquele que vai ao teatro não é mero espectador, mas aquele que, na estupefação da ação, se dispõe a ver o divino de cada ente como a dinamicidade e possibilidade do movimento de recriação de si mesmo em que espectador e peça acontecem juntos na tensão de identidade e diferença da descoberta daquilo que cada um é.

Homens, nós, não somos frustrados pela civilização ou pela separação do uno-originário. Nossa dor, a dor de Harry Haller, é a dor dos esquecidos da vida inevitável e incessantemente misteriosa, cujo mistério não é algo que um sujeito decide por esconder, mas a parcela de cada um que não se sabe porque ainda não é e, no grande mistério, ininterruptamente vem a ser, vem a ser, vem a ser, está vindo a ser nesse exato instante e de novo e novamente e de novo. Harry Haller, ao descobri-lo, mata Hermínia, aquela que com ele tanto parecia, seu amor, e com ela morre mais um pouco. Seria fácil enxergar a morte aqui como mera ficção e “surrealidade” e nos livrarmos do trabalho de pensá-la, já que o texto indica que Hermínia não morreu de fato, mas apenas na experiência reservada do Teatro Mágico. Perderíamos, contudo, a perspectiva fundamental da parcela do próprio de cada um – Harry Haller, Hermínia, homens – que é abandonada e cuja morte só nos resta aceitar quando não nos tomamos por sujeitos próprios e conquistados prontos. A “variedade infinita do jogo da vida”[22] que é nosso dever e nossa salvação conquistar, mais do que a construção de nosso destino, é a lembrança de que vida e morte, presença e ausência, mundano e divino, estão em nós, ao nosso redor, no velar e desvelar, cobrir e descobrir de todo amor, toda arte, toda vida. A partir do momento em que nos apercebemos da nascentividade própria a tudo aquilo que é junto à sempre possibilidade de deixar-se de ser na dança entre Harry e Hermínia, entre nós e nós mesmos, o resto é caminho.


Bibliografia

FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”. In: Os Pensadores – Freud. São Paulo, Abril Cultural 1978.

HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, Vozes 2008.

_____. “O tempo da imagem do mundo”. In: Caminhos de floresta. Coimbra, Calouste Gulbenkian 2002.

HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Rio de Janeiro, Record 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo, Companhia das Letras 1992.



* Originalmente publicado na Revista Tempo Brasileiro, número 171, 2007.

[1] As aspas são aqui usadas para denotar que a palavra “filosofia” é tomada em seu sentido corrente.

[2] HESSE, 2007, p. 9

[3] HESSE, 2007, p. 38.

[4] FREUD, 1978, p. 170.

[5] HESSE, 2007, p. 52.

[6] Filme dirigido por Kevin Costner, em 1990. No original, Dances with wolves.

[7] HESSE, 2007, p. 74.

[8] HEIDEGGER, 2008, p. 68

[9] NIETZSCHE, 2006, p. 18.

[10] HESSE, 2007, p.40.

[11] HESSE, 2007, p.40.

[12] NIETZSCHE, 2006, p. 30.

[13] NIETZSCHE, 2006, p. 30.

[14] NIETZSCHE, 2006, p. 41.

[15] NIETZSCHE, 2006, p. 36.

[16] NIETZSCHE, 2006, p. 34.

[17] HESSE, 2007, p. 68.

[18] HEIDEGGER, 2008, p. 132.

[19] HESSE, 2007, p. 43.

[20] HESSE, 2007, p. 123.

[21] HESSE, 2007, p. 117.

[22] HESSE, 2007, p. 208.

A loucura de Andrei em O Monge Negro

“Andrei Vassilievitch Kovrin, magister, sofreu um esgotamento que lhe arruinou os nervos.” (TCHEKHOV, 1987, p. 13) É essa a frase inicial de O Monge Negro. Nela, se nos apresentam dois fatos, o primeiro dos quais é o nome do protagonista da história. O segundo é seu estado de saúde; somos levados a crer que algo não vai bem. São esses os dois pontos-chave que procuramos debater no presente texto: Andrei Vassilievitch Kovrin e não a sua, mas a (in)sanidade como uma suposta percepção inadequada da realidade.

É no primeiro capítulo também que conhecemos as personagens principais, bem como o cenário em que se desenvolve boa parte da narrativa. Dos primeiros, são destacáveis três: Andrei, o magister esgotado mentalmente; Iegor Semionovitch Pessotski, conhecido horticultor russo, tutor do órfão Andrei, a quem este deve sua educação; e, finalmente, Tânia Pessotski, filha de Iegor. Assim que seu problema se manifesta, Andrei é aconselhado a passar uma temporada no campo e, coincidentemente, recebe um convite de Tânia para um tempo em Borissovka, a propriedade dos Pessotski. Diz-nos o livro que Andrei aceitou o convite, “ que precisava mesmo mudar de ares.” (Idem) Por que se distancia, contudo, um homem de seu cotidiano, com base em um esgotamento nervoso? Deixemos de lado esta questão para retomá-la mais tarde.

Voltando à descrição do cenário, podemos dizer que quase tudo se passa em Borissovka. A propriedade é repleta de jardins, hortas e pomares criteriosamente ordenados por mãos humanas:

A parte ornamental do jardim, que Pessotski chamava desdenhosamente de “insignificância”, produzia em Kovrin, quando menino, uma impressão fabulosa.

(...)

Havia belas árvores simétricas, de troncos eretos como os das palmeiras.

As árvores se dispunham como peças de xadrez, em linhas retas, qual fileiras de soldados; e essa pedante regularidade, somada à altura igual, dava ao jardim um ar monótono, até cansativo. (TCHEKHOV, 1987, p. 16-7)

Constatamos, em palavras como “simétricas”, “eretos”, “linhas retas” e “fileiras de soldados”, o caráter imponente e rígido da organização dos jardins e, sobretudo, o efeito que tem este sobre o ânimo de todos na casa. É de se notar que Semionovitch envolve a todos em seus cuidados – muitas vezes obsessivos – com o jardim, chegando por vezes a agredir empregados, tamanho é seu zelo pela perfeição e uniformidade. Na ameaça de geada, o jardim vira assunto principal na mesa do jantar. Tânia e Andrei acabam por também se envolver eventualmente em tais obrigações, mas é sobre ele, Andrei, que a situação parece exercer um peso maior, como vemos em momentos posteriores.

O caráter obcecado de Iegor Semionovitch, ainda, segue se manifestando em diversos momentos, inclusive no momento em que Tânia deixa escapar, enquanto conversa com Andrei, uma reclamação:

Infelizmente, nossos conhecidos são gente aborrecida demais, e assim mesmo são poucos. A conversa é sempre jardim, jardim, jardim e nada mais. Caules, madeiras – riu, – maçãs de sementeira, parasitas, brotos, podas, enxertos... Toda a nossa vida gira em torno do jardim, não sabemos sonhar senão com maçãs e pêras. (TCHEKHOV, 1987, p. 20)

Iegor, preso em suas idéias rígidas e regulatórias, não compreende a natureza essencialmente desenfreada da realidade ao seu redor, e insiste em um esforço em prol de seu jardim ideal. Não percebe ele que o real é fugidio, surpreendente e aparadigmático em sua diversidade e imprevisibilidade de manifestações. Deste modo, persiste em normatizar a natureza ao seu redor, atividade na qual constante e previsivelmente se frustra. É ele que, inclusive, sugere a Andrei que ficaria muito satisfeito em vê-lo casado com Tânia, pois nenhum outro genro seria capaz de levar adiante os trabalhos do jardim como ele.

Iegor, horticultor, possui alguma força que o move no trabalho com o jardim. Algum impulso o leva a trabalhar na modificação da natureza, e isso, ao que tudo indica, lhe proporciona um sentimento de satisfação pessoal, como se o cuidado do jardim fosse um caminho de vida. Isso não seria algo benéfico? Não é possível que pessoas se interessem por uma atividade e dela recebam grande alegria? A princípio, isso seria algo benéfico. O que o leva à frustração? Mais do que isso, o que faz com que seu esforço se estenda aos membros da família, e ele acabe por ambicionar o controle do destino de todos ao seu redor? Parece-nos que seu relacionamento com a realidade se prende a uma relação de domínio, mais que de escuta. Iegor escuta, é claro, mas que tipo de escuta tem lugar? Ele não dialoga com a realidade no sentido de reconhecer seu vigor na natureza. Seu esforço é de modificaçãoassim como o é o esforço poético – do agir – da arte. Sua escuta, no entanto, não aponta para a verdade da natureza, mas somente para sua vontade de controle e poder. A virtude poética, aqui, se apresenta também enquanto vício, pois não busca diálogo, e sim comando.

No segundo capítulo, persiste o cotidiano tedioso e opressor. Contudo, uma noite, algo acontece a Andrei após ouvir uma canção. De imediato é tomado pela idéia fixa de uma lenda a respeito de um monge, vestido de negro, que, segundo se conta, andaria pelo mundo em diversos lugares ao mesmo tempo. Dias depois, Andrei caminha pelo campo. Em que constitui um campo? O campo é um lugar de caminho, um lugar de exploração de possibilidades. Em meio ao selvagem, ao natural, o homem se põe à mercê da realidade, o homem se posiciona num modo de escuta e diálogo maior do que aquele que lhe permite seu cotidiano. Andrei avista o Monge Negro da lenda. Alegre por ter encontrado o ser que tanto o fascinava, deixa de estar taciturno e compenetrado em seus estudos; sofre uma mudança. Passa a se mostrar empolgado e satisfeito. Isto se intensifica mais tarde, quando as aparições do Monge se tornam mais e mais freqüentes, e com ele Andrei desenvolve diálogos que considera interessantíssimos e inspiradores para seu pensamento filosófico. Casa-se, afinal, com Tânia. Entretanto, assim que fica sabendo de suas visões, ela o recomenda o tratamento psiquiátrico que daria fim às aparições do Monge. Mais uma vez nos deparamos com uma atitude prescritiva. O que os leva a tal? O que faz com que um grupo de pessoas não se ponha a compreender a diferença, mas a repreendê-la? Parece-nos que a motivação dessa atitude se encontra alhures: nossos personagens pensam por meio de conceitos inevitavelmente generalizadores. Estes, pois, não se põe à escuta da diferença, que termina classificada por exceção. E, seguindo por esse caminho, a direção provável a se tomar é a de tentativa de mudança do outro. E que tipo de mudança é essa? Certamente não é motivada por reflexão, mas pela comparação com um parâmetro a que se deve adequar. O procedimento se assemelha àquele tomado por Iegor com seu jardim e seus familiares.

Após tratamento, o Monge desaparece para só reaparecer no leito de morte de Andrei, que deixa de ter visões. Parece, porém, que as visões fazem-lhe falta, e Andrei se queixa:

Por que... por que vocês me curaram? Poções de brometo, ociosidade, banhos quentes, vigilância, um terror idiota a cada garfada, a cada passo... tudo isso vai acabar fazendo de mim um idiota. Fiquei transtornado da cabeça, deu-me a mania de grandeza, mas com isso tudo eu era jovial, ativo e até mesmo feliz, era interessante e original... Agora me tornei racional e sólido, mas igual a todo mundo: sou uma mediocridade, para mim é difícil viver... Ah, como vocês foram cruéis comigo! Eu tinha alucinações, mas a quem isso fazia mal? Pergunto: a quem fazia mal? (TCHEKHOV, 1987, p. 68)

É esse o depoimento de Andrei, curado, pouco antes de largar sua esposa. Devemos questionar aqui, por que ele, com suas visões, é considerado inadequado e é obrigado a se livrar de sua “perturbação”. Sua fala demonstra certa lucidez e, mais que isso, aponta para questões: Andrei se considerava louco? Até que ponto o tratamento o desviou de seu caminho? O que é essa perturbação? O que é a loucura? Segundo CHEVALIER (1990), no verbete Louco do Dicionário de Símbolos,

O inspirado, o poeta, o iniciado parecem loucos muitas vezes, por algum aspecto do seu comportamento, que escapa às normas habituais. Nada parece mais louco do que a sabedoria para aquele que não conhece outra regra que o bom-senso. (...) O louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade. Segundo o Evangelho, a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de Deus e a sabedoria de Deus, loucura aos olhos dos homens. (pp. 558-9)

Seriam os loucos, portanto, portadores de alguma espécie de dádiva divina? O que nos diz Chevalier quando aponta alguémfora dos limites da razão”? A razão, do latim ratio, é uma das traduções do grego lógos. Não é a tradução, mas uma das, e, sobretudo, a predominante em nosso tempo. Se pensarmos, no entanto, na história da palavra, o que nos diz o lógos? Para tal, citamos Heidegger (1978) que, em suas reflexões sobre Heráclito, o relaciona ao verbo légein:

légein significa: dizer e falar; logos significa légein, enunciar. (...) Mas também significa, tão cedo, e ainda mais originariamente, e por isso desde sempre, e também na significação acima citada, o que entendemos com o “legen” do alemão, que soa parecido: deitar e estender diante. O que impera aqui é o recolher, o legere do latim, como colher no sentido de ir pegar e recolher. Légein significa propriamente o pensar e apresentar o que recolhe a si e às outras coisas. (p. 112)

Está o lógos, assim, intimamente relacionado à realidade, como condição básica de existência desta em seu apresentar e manifestar-se. O lógos não é estático, como os conceitos, e não se prende a eles, assim como a realidade, em um impulso constante de desvelar e velar. O louco seria, desta forma, aquele que se não esqueceu do vigor originário do lógos em meio à regência da ratio? É esta a sabedoria de Deus que parece loucura aos olhos dos homens? Sua inspiração seria a que o conduz ao caminho de escuta da sabedoria divina na realidade que o cerca?

Como dito anteriormente, a loucura se configura no fato de que Andrei vê algo que os outros não vêem; tem uma percepção da realidade que difere da dos outros. E a partir de que ponto isso se constitui como um problema? Estaria de fato o problema na percepção de Andrei ou na dos outros? Quem está apto a efetuar tal julgamento?

Sobre a realidade, podemos dizer que, acompanhando a tomada de lógos por ratio, nossa concepção daquela é reduzida ao real racional: o real do bom senso do qual o louco se desvincula. Só consideramos real o comprovado pela razão, pelo método e pela experiência. Mas não seria isso uma redução da dimensão do real ao plano do conhecido? Não estaria nossa concepção deixando de lado o plano do desconhecido-possível? O próprio Monge Negro, ao conversar com Andrei, nos propõe:

– Mas você é uma miragem – disse Kovrin. – Por que está aqui, sentado neste lugar? Isso não condiz com a lenda.

­– Dá no mesmo – respondeu o monge mansamente, voltando o rosto para Kovrin. – A lenda, a miragem, eu... Tudo é produto da sua imaginação excitada. Eu sou um fantasma.

– Quer dizer que não existe?

– Pense o que quiser – respondeu o monge, sorrindo ligeiramente. – Eu existo na sua imaginação, e como sua imaginação é parte da natureza, devo existir também na natureza. (TCHEKHOV, 1987, p. 46)

O que existe na mente, por existir na mente, é menos real, menos natural? Parece-nos que não. Por que então a rotulação de Andrei? Ao que tudo indica, suas visões não causavam dano a ninguém. Por que então isola-lo como doente sem sequer considera-lo, primeiramente, enquanto indivíduo? O impulso classificatório-prescritivo não permite a diferença. Assim como Iegor remodelava suas plantas compulsivamente, a família condena Andrei a se adequar a um padrão. Mas de onde vem esse padrão? Em que momento a loucura passou a ser algo negativo?

Sócrates, no Fedro, nos apresenta um outro modo de vê-la:

Se se pudesse afirmar, sem restrições, que a loucura é um mal, teria falado bem, mas na realidade os maiores bens vêm-nos por intermédio da loucura, que é, sem dúvida, um dom divino. De facto, é no estado de loucura que a profetisa de Delfos e as sacerdotisas de Dodona têm proporcionado à Hélade inúmeros benefícios, tanto de ordem privada como pública, enquanto, no seu bom senso, a coisa de pouca monta ou nada se reduz o que fazem. E se me referisse à Sibila e a tantos outros que, mercê da arte mântica devidamente inspirada, predisseram variados factos a muitas pessoas, mantendo-as no recto caminho para o futuro, iria alongar-me demasiado a falar de coisas evidentes a todos. (PLATÃO, 1997, p. 57-58)

Constatamos que a loucura nem sempre foi discriminada. A necessidade do discurso de Sócrates, contudo, nos leva a supor que sua fala respondia a um pensamento oposto: se rebaixavam os loucos a seu tempo. E aonde nos leva a classificação?

Platão prossegue classificando a loucura em quatro tipos: a dos fisicamente incapacitados, a dos videntes e profetas, a dos músicos e, finalmente, a dos amantes. À exceção da primeira, as loucuras se apresentam de forma bastante produtiva e importante. A clarividência, a música e o amor eram fundamentais para seu mundo. Mas não é o mundo grego clássico ainda o nosso? Até que ponto nosso modo de pensar-viver se encontra arraigado àquele?

Se pensarmos em Andrei, em que loucura o enquadraríamos? Suas visões lhe anunciam fatos importantes sobre seu futuro e o da humanidade, levando-o a profundas reflexões. Mais que isso, abrem-lhe novas possibilidades de caminho-futuro. Em relação à loucura dos músicos, até que ponto Andrei a ela se vincula? A princípio, ele não é instrumentista ou cantor; a única menção à sua experiência musical se dá na ocasião em que atende ao sarau. No entanto, é ele um pensador. O pensador não é aquele que se coloca à escuta da realidade, como o filósofo? A distinção entre filosofia e arte, sabemos, nem sempre existiu; pensadores como Heráclito e Parmênides registravam seu pensamento em versos. Pensamento e reflexão são facetas da filosofia, tão relacionada às musas quanto a música: são caminhos de pensamento, criação e escuta igualmente poéticos. Enfim, o amor. O amor? O que ama Andrei? Tânia? O que é o amar? O termo grego para amar, phílein, talvez venha em nosso auxílio. Além de amar, ele também se traduz por tender a, unir-se a, direcionar-se a. Não é Andrei um amante do caminho? Não seria o amor essa loucura que o faz seguir adiante, que o faz viver? Andrei ama o saber, e, com isso, não pensemos em um sentido erudito empobrecedor. Nosso personagem ama o saber porque se posiciona a escutar e dialogar: com a realidade, o Monge inclusive. Andrei tem o amor como força motriz e originária do caminhar, e é o amor que o leva para além do bom senso, pois seu caminho, sua busca, direciona-se à sua realização – e não à adequação.

A classificação é, por si, ineficaz. Soluciona aparentemente o problema de quem convive com o louco, mas não resolve o louco enquanto sua aparente perturbação permanece inabalada; ele passa a pertencer a uma categoria universal e sua individualidade é, assim, desprezada. Perguntamo-nos, portanto: até que ponto é válido rotular o louco como louco? Não somos todos loucos à medida que buscamos nosso caminho individual? E, se não somos, ao menos não deveríamos ser? A perturbação não seria o espanto do homem assombrado pela realidade? Não é ela que o direciona a seu destino? E aquilo que nos direciona a nosso destino não é justamente o amor?

Ainda que de forma otimista, a mera catalogação parece não dar conta do real. Sobre isso, nos diz a psicanálise em PASSOS (2002):

O diagnóstico de esquizofrenia e a marca identificatória que daí advém correspondem a uma espécie de morte simbólica. (...) Ouvir cuidadosamente cada paciente, reconhecer seus ditos como portadores de um saber de si foi o caminho da psicanálise e trouxe novas perspectivas para a psiquiatria. (...) Reduzir o tratamento à medicação, ao confinamento ou à aplicação de um saber estabelecido como verdade é desconsiderar uma subjetividade (...).

O louco é portador de um saber. Tal assertiva nos leva a questões que podem guiar nossa conclusão. Que não seja, entretanto, uma conclusão conclusiva. Que seja uma conclusão que nos leve a repensar o caminho do louco e os nossos caminhos de pensamento, vida e amortermos que enumeramos pelos simples fato de ocorrerem separadamente em nossa língua, que acreditamos estarem profundamente unidos. Sabemos que o louco nos chama à escuta de sua resposta a uma escuta – experiência – particular da linguagem que, em sua singularidade, nos causa estranhamento. Seu pensamento parece singular, mas até que ponto isso constitui erro? A singularidade não seria o curso natural de nossa maior busca? Será que nos encontramos privados do caminho primordial do viver? Aonde tal caminho desencaminhado nos leva? A resposta a essa pergunta pertence ao não-saber tanto quanto a pergunta em si. Andrei nos anuncia algo, contudo, ao se comparar a outros loucos, quando diz:

Como eram felizes Buda, Maomé e Shakespeare, a quem seus bondosos parentes e médicos não curaram do êxtase e da inspiração! – disse Kovrin. – Se Maomé tivesse tomado brometo de potássio para os nervos, trabalhado duas horas por dia e bebido leite, esse homem assombroso não teria deixado atrás de si mais que seu cachorro. Médicos e parentes bondosos se esfalfam para tornar cretina a humanidade, e tempo virá em que a mediocridade passará a ser considerada gênio, e a humanidade perecerá. (TCHEKHOV, 1987, p. 68)

Andrei nos aponta para a importância de seu dizer em sua diferença. Mais que isso, ele denuncia um possível desnorteio do qual padeceríamos nós, dominados pela leitura da ratio e esquecidos do lógos se manifestando ao nosso redor. No que toca nossa individualidade, o louco se destaca enquanto prescinde do bom senso, e deixa que sua peturbação-espanto o guie. O louco nos indica e demanda uma escuta atenta da linguagem que nos rodeia e nos permite a existência, fundamental para a persecução de um caminho plenamente humano enquanto pensante e poético.


Bibliografia

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 3a edição, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências: Lógos. Trad. Ernildo Stein. In Os Pensadores: Os Pré-socráticos. São Paulo: Editora Abril Cultural, 2a edição, 1978.

PASSOS, Marci Dória; Cavalcanti, M. T.; Ribeiro, B. T.. Esquizofrênico para sempre? In: Luiz Paulo da Moita Lopes; Liliana Cabral Bastos. (Org.). Identidades - recortes multi e interdisciplinares. 1 ed. Campinas: Mercado de Letras Edições e Livraria LTDA, 2002.

PLATÃO. Fedro. Lisboa - Portugal: edições 70, 1997.

TCHEKHOV, Anton Pavlovitch. O Monge Negro. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.