"Delírio" de Brás Cubas: visão de Pandora

Amigos leitores, compartilho abaixo texto publicado na coletânea Jornada Discente Machado de Assis: melhores artigos, de organização de Dau Bastos. Espero que façam um bom trekking pelas linhas tortas.

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Como reinterpretar o “Delírio”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, sobre o qual tantos já se debruçaram? Quais os caminhos permitidos e proibidos pela tessitura imagética machadiana? Nomes como os de Antonio Candido, Augusto Meyer e Ronaldes de Melo e Souza já sobre ele escreveram, causando mesmo a impressão de que as trilhas interpretativas do texto já estejam gastas.

Quem pratica o trekking, contudo, sabe que as trilhas só se degradam se mal percorridas por forasteiros descuidados que sobre elas despejem seu lixo. O andarilho responsável não só se preocupa com seus passos, dados lenta e atentamente para que possa parar vez ou outra e percorrer com os olhos o caminho que vai das raízes às copas das árvores e por fim ao fogo das estrelas visível a cada clareira aberta, mas também com freqüência deixa à beira do caminho sementes e mudas que revigoram e renovam a passagem do caminhante futuro.

Se coubesse a este ensaio a escolha de uma metodologia, seria ela a da caminhada ecológica que visse e distinguisse obra de crítica, semeasse possibilidades para os leitores futuros e, por fim – mas também por início e por meio –, não perdesse de vista a luz das estrelas inalcançáveis a iluminar os sempre novos encontros da leitura.

Encontramo-nos com o “Delírio” e a primeira semente que lançamos sobre o solo – e, como todas aqui plantadas, podem tanto germinar quanto apenas apodrecer e alimentar a semente vizinha – é a da questão do título. O delírio é o devaneio do louco, a quem a lógica e a razão abandonaram. Ainda assim, o capítulo apresenta trama bem costurada, uma coerência própria que independe da logicidade. Podemos buscar esse sentido próprio, ainda que irracional, no verbo latino delirare, que diz do movimento de se afastar dos sulcos deixados no terreno pelas rodas da charrete, chamados, em latim, lira. Como sair do caminho já marcado? Por um lado, o título indica o caminho de Machado, que, ainda que na forma romanesca, nos trará algo de original. Por outro, temos o caminho de Brás Cubas, rumo ao que está além e fora de todo caminho percorrido.

O caminho do “Delírio”, portanto, apresenta-se como uma fuga do trilhado com freqüência e repetidamente: uma fuga do habitual em direção ao caminho singular próprio das obras de arte, que, mesmo quando se utilizam de elementos e influências, fazem surgir a cada repetição uma novidade e um sentido original. Aponta-o Augusto Meyer, em seu “Delírio de Brás Cubas”, quando, após comparar possíveis fontes do referido texto, diz que

Machado não tomou de empréstimo Natureza ou Pandora senão a si mesmo, isto é, a esse profundo bucho de ruminante que todos trazemos na cabeça e onde todas as sugestões, depois de misturadas e trituradas, preparam-se para nova mastigação, complicado quimismo em que já não é possível distinguir o organismo assimilador das matérias assimiladas... (1952: 128).

A imagem é curiosa: um bucho na cabeça. O órgão digestório, em que energia se gasta e se cria, em que a comida nunca sai como entra, por mais que vá e volte tantas vezes, mas muda a cada instante, permanece a mesma enquanto se torna outra – assim como a trilha percorrida pela segunda vez. Está aí um mistério: o que há no estômago que possibilita destruição e geração simultâneas? Como poderia haver na cabeça semelhante poder de gestação e digestão?

Meyer é perspicaz quando, na crítica de Machado, segue o caminho do estilo do mestre: sugere ao leitor relações que não necessariamente explicita. O bucho de Meyer é a questão principal do caminho de Brás Cubas, o qual nos cabe, portanto, percorrer.

Assim como no estômago, as coisas passam pelos séculos, e, ainda assim, nunca são as mesmas. Brás Cubas, sobre o lento lombo de um hipopótamo, se dirige a um lugar tão distante quanto a origem dos séculos. Cabe, portanto, a pergunta: não seria melhor um veloz cavalo? Talvez sim, fosse a origem dos séculos um ponto no tempo e no espaço, a causa cronológica primeira do distender-se do tempo. Pelo que narra Brás Cubas, não se trata disso: a paisagem que alcançam é branca, fria e silenciosa. Isso nos sugere – assim como a fala do hipopótamo quando diz que “Já passamos do Éden” – não se tratar de visitar o primeiro século, mas sim um não-lugar pré-cosmogônico, uma origem negativa e indiferenciada possibilitadora do desenrolar-se, renovar-se e diferenciar-se original de cada século e as coisas e experiências por esse inauguradas, não necessariamente em relação causal com o século anterior.

No não-lugar, encontra-se Cubas com Pandora, habitante e senhora do vazio da origem dos séculos. Ela, cuja imagem é dita indiferenciada da paisagem branca, contribui com a concepção de origem no texto. Interrogada sobre sua identidade, responde: “Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e inimiga” (Assis, 1997: 12). Brás Cubas atordoa-se, não entende uma natureza que não é apenas dadivosa. Ela, em suas palavras, fala de si e de seu movimento, no qual os minutos sucessivos e promissores trazem também consigo a morte. A origem dos séculos, portanto, é a negatividade da qual devém tudo o que é e à qual retorna tudo que deixa de ser.

A etimologia, como nos esclarece Junito Brandão, vem iluminar nosso entendimento ao trazer-lhe a escuridão da natureza que se oculta no obscurecer. Diz ela: composto de pan- – todo – e dóron – dom, dádiva –, donde Pandora, a detentora de todas as dádivas. Cabe observar, no entanto, que dóron é um derivado do verbo didónai – doar, ofertar –, cuja raiz *ded-, *de- está representada em quase todas as línguas indo-européias e cujo sentido inicial, curiosamente, é tomar e receber (1991: 234-5).

A ambigüidade da imagem é própria de uma compreensão dinâmica da realidade em seu doar-se e retirar-se, em que os opostos não se apresentam, portanto, antagônica, mas complementarmente, no que chama Ronaldes de Melo e Souza de “formidável espetáculo de incessante aclínio e declínio do mundo em gestação e nadificação permanente” (2006: 113). Nesse processo não se excluem sim e não, ser e não ser, mas coloca-se o não como possibilidade de todo sim, assim como o que é só pode ser o que ainda não é. Na tensão complementar dá-se a realidade, ou, nas palavras de Machado, os séculos. A vida, assim, ainda nas palavras de Ronaldes de Melo e Souza, não se opõe à morte, mas “não subsiste senão porque a morte existe” (ibidem: 110) no eterno vir a ser e deixar de ser de Pandora.

Inscreve-se o “Delírio”, capítulo sete das Memórias, em um momento de transição. Até ali, contava Cubas da época de sua morte. Logo depois, inicia a narração de sua vida a partir de seu nascimento. Como essa transição se faz presente na posterior palavra brascubiana é algo que gostaríamos de desenvolver.

Como nos diz Franz Georg Stanzel, “ao mudar de ator a autor, o eu passa por um desenvolvimento, um processo de amadurecimento, uma mudança de interesses, que freqüentemente ganha destaque no romance” (1971: 66). Entre o Brás Cubas narrante e o Brás Cubas vivente estende-se, portanto, não só uma distância temporal, mas também uma “metamorfose existencial”, como a chama Ronaldes de Melo e Souza (2006: 18). Que metamorfose é essa e que espécie de diálogo se desenvolve entre a experiência do eu-vivente e o comentário do distanciado eu-narrante?

Voltemos ao “Delírio”. A figura de Brás Cubas em encontro com Pandora sugere-nos uma dupla mítica mais antiga: Pandora e Prometeu. É com o roubo de fogo divino por este que Pandora desce ao mundo dos homens. Não obstante, cabe apontar que o fogo divino mítico não é nosso fogo de fósforo, forno e fogão. Antes de concepções utilitárias e objetivas, o fogo – ele mesmo uma das respostas à busca grega pela arkhé, ou origem – aparece no pensamento de Heráclito (1978: 82), em seu fragmento 30:

esse mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.

Heráclito nega a concepção de um mundo feito no tempo pretérito, em favor de um que está sempre em vias de se fazer, a partir do movimento do fogo. Assim como nas palavras de Pandora, trata-se aqui de uma realidade que nunca se dá por completo, mas está sempre em trânsito entre o que é, o que não é e o que deixa de ser. Em um primeiro sentido, podemos pensar o fogo como luz, em que o acender-se é o iluminar-se daquilo que se dá a ver pela natureza e o apagar-se é o escurecer-se e ocultar-se do que deixa de ser. Não são gestos separados em si, mas simultâneos, como nos aponta a moderna palavra foco, oriunda do latim focus – fogo. Em um palco teatral, ao mesmo tempo que algo recebe foco outro algo necessariamente o perde, no jogo dinâmico de iluminação. Em outra disposição luminosa, não mudaria apenas a posição da luz, mas se criaria outra peça entre luz e sombra, entre o que se vê e o que não se vê.

Em uma segunda compreensão, a chama é algo que varre o terreno por onde passa com transformações. Uma folha se torna cinza, o ar puro se torna fumaça, e cada um segue se transformando natural e ciclicamente, como até mesmo a ciência nos aponta em seus ciclos bioquímicos.

A potência criativa do fogo, na compreensão temporal cíclica do mito, contudo, não é lógico-causal. Ter o fogo e conhecer a força de Pandora não se seguem um ao outro linearmente, mas são dimensões diversas de um mesmo evento. O roubo do fogo por Prometeu é em geral compreendido como um avanço tecnológico do domínio da natureza pelo homem. Brás Cubas parece percorrer outro caminho. Se, como diz Gaston Bachelard, o fogo é o elemento capaz de receber valorizações contrárias, ao mesmo tempo é ele a potência de criação e destruição que o homem ambiciona possuir para “saber tanto quanto seus pais, mais que seus pais, tanto quanto seus mestres, mais que seus mestres” (2008: 1-18).

Voltamos assim ao bucho ruminante de Meyer, o que permite a renovação em toda lida com o que já está aparentemente dado e pronto. Ao roubar o fogo dos deuses, Brás Cubas se estabelece em um relacionar-se diverso com a realidade, não mais estática, mas dinâmica, proporcionado pela criatividade pírica. Se por um lado o fogo é pura potência transformadora e descontrole sobre o qual uma “atitude objetiva nunca pôde se realizar” (ibidem: 2), ele é também o elemento de criatividade que o homem descobre em si, a tocha-motriz iluminadora da ação poética – brascubiana, inclusive.

No início do “Delírio”, Brás Cubas se vê transformado em um barbeiro chinês e logo depois em Suma Teológica. Do ridículo ao sério, mostra ele, o caminho é curto. De modo semelhante aponta ao longo do livro diferentes perspectivas de um mesmo evento – como o caso do dinheiro achado e a teoria de equivalência das janelas – ou ainda zomba de seu sofrimento de outrora pela morte da mãe para começar um capítulo mais alegre.

A ironia, aqui, não necessariamente desconstrói as interpretações e encontros com os eventos, mas enriquece a compreensão de uma realidade múltipla porque viva e relacionada a uma origem em incessante gestação. Trava-se entre eu-vivente e eu-narrante um diálogo especial que se distancia da comunicação para se aproximar da conversa descrita por Maurice Blanchot em “A experiência limite”, em que (cito:)

o que é dito uma vez por um lado é dito novamente uma segunda vez pelo outro e não só se reafirma, mas também – porque há repetição – se eleva a uma nova forma de afirmação através da qual, mudando de lugar, a coisa dita entra em relação com sua diferença e se torna mais aguda, mais trágica: não mais unificada, mas, pelo contrário, tragicamente suspensa entre dois pólos de atração (1993: 214).

A diferença da coisa consigo mesma, que o diálogo põe em jogo, não se trata de mera incoerência, mas de uma alteridade última que – como uma origem negativa ou a luz que não se deixa ver, mas possibilita que através de si as coisas sejam vistas – se faz presença em ausência na escrita brascubiana.

O pessimismo que Meyer sugere, assim, se desfaz para dar lugar a um pensamento e uma escrita crítica. Todavia, essa crítica se faz não como mero julgamento de aprovação e reprovação, mas, no distinguir das diferenças da realidade, como a descreve Emmanuel Carneiro Leão:

Etimologicamente, crítico provém do verbo grego krínein, cujo primeiro sentido é separar para distinguir o que há de característico e constitutivo. Essa separação distinta se exerce, remontando à ordem dos fundamentos constituintes e por isso devendo-se a uma ordem superior, à origem (1977: 164).

A origem se relaciona à crítica. O movimento de busca empreendido nas trilhas originais do delírio se dirige ao lugar de que nunca pode se retirar: a possibilidade, a mesma de um bucho ruminante que renova as condições das coisas. Brás Cubas, após o delírio, reconhece em cada diferenciação do real o movimento de Pandora, em cada diferença entre eu-narrante e eu-vivente, a origem indiferente-indiferenciada. Com isso, compadecer-se ou debochar de si mesmo é um caminho de reconhecer a insubstancialidade da luz do fogo iluminador do mundo: a alteridade da latência misteriosa que não se cansa de fazer identidade concisa na presença. A crítica passa a ser, então, auto-diálogo: escuta da alteridade criativa inerente a toda e cada identidade; do iluminar-se do apagar-se ou apagar-se do iluminar-se na escuta de si mesmo como possibilidade.



Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Globo, 1997.

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BLANCHOT, Maurice. “The limit experience”. In: The infinite conversation. Minneapolis: Minneapolis University Press, 1993.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991, v. 2.

HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: Os Pensadores: pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MEYER, Augusto. Machado de Assis. Rio de Janeiro, Organizações Simões 1952.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006.

STANZEL, Franz. Narrative Situations in the Novel. Bloomington, Indiana University Press, 1971.

Lançamento do Dicionário de Poética e Pensamento

O filho demorou, mas nasceu! Não bastaram as oito barrigas gestantes (na verdade é um projeto de corpo inteiro): a gravidez já vem de anos, e já passaram por ela outras "mães".
O nosso querido Manuel (Antônio de Castro) já vem tocando e pensando - chocando! - o site há uma década, e só agora o bendito ovo de Éros eclodiu: o Dicionário de Poética e Pensamento.




















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