A tragédia[1] do comentário


Se não me engano, é em A ordem do discurso que Foucault comenta o modo como os comentários dos comentários dos comentários acabam por originar um discurso próprio, válido e verídico per se. Todo o trabalho de Heidegger, principalmente em relação à filosofia grega, mas também no que toca sua interpretação de modernos como Nietzsche, constitui um esforço nesse sentido, um sentido de busca de um sentido próprio, sem necessariamente eliminar o ruído que o distancia do pensamento original, mas de perceber o que diz um pensamento antes dos milênios — ou anos ou meses — de traduções e interpretações que o desviaram de seu cuidado primeiro.

Dois tipos de influências — como aquilo que flui de fora para dentro do texto — principais que nunca aparecem por si só na leitura, mas exercem pressões diferentes, nos parecem aqui relevantes. Um é aquele que busca os ecos da vida do autor em sua obra. Repercussões de um som primeiro, são de volume baixo, de difícil audição. Ainda assim, em maior ou menor volume estão o tempo todo ecoando de nossas paredes até nossos ouvidos sons e sons repetida e confusamente. Se procurarmos bem e nos concentrarmos na busca de um som — digamos que somos românticos e busquemos ecos do bater de asas de uma borboleta —, certamente o ouviremos. A borboleta, no entanto, não saberemos qual é, onde está, quando viveu. Talvez tenha estado na China de 500 a.C., talvez na minha janela. Ou, o que é pior: talvez sequer tenha existido e minha mente tenha criado um fantasma do eco que ouvi em virtude de minha expectativa e concentração.

O segundo tipo de influência, que afinal inclui o primeiro, é a distância do leitor a dificultar sua leitura. Não se trata de burrice, nem ousaríamos nós apontá-la se fosse o caso. Em tempos pós-modernos não se pode dizer que o rei está nu, pois, diz-se, tanto faz se o rei está nu ou não, o que o veste ou despe é a subjetividade do sujeito observador.[2] O mesmo se dá muitas vezes na leitura: o que diz o texto se perde com freqüência na recepção, que encaixa o que poderia haver de novo e surpreendente na leitura nos moldes receptivos do leitor.

Quanto a Sócrates e Platão, pelo menos naquilo que nos chega aos dias de hoje em alto e bom som, não se ouvem pesquisas de ecos de homossexualidade ou de etnocentrismo em suas filosofia. Não há dúvidas de que ambos estão presentes nos diálogos em menções esporádicas. O próprio encontro de Fedro e Sócrates no Fedro parece encenar o amor ao redor do qual circulam os discursos pelos dois trocados. Ainda assim, ninguém até hoje que eu saiba pretendeu condenar — ou, nos dias de hoje, mais politicamente corretos, diríamos reduzir — o pensamento de Platão a um discurso gay ou Nacional-helenista — partido que até hoje, salvo engano, não se almejou criar e esperamos que não se crie. Nosso texto, deixemos claro, não é a favor da hegemonia helênica nem incita movimentos de supremacia racial grega. Se um dia o partido for inventado, dispensamos direitos autorais. — Queremos atribuir o silêncio a respeito de tais temas à grandiosidade de sua obra, na qual outras questões a nós e provavelmente outros comentaristas nos parece(ra)m mais vitais e evidentes.

Dando agora uma ligeira corrida aos nossos tempos: se, no entanto, fôssemos leigos e verificássemos os comentários da filosofia do século XX por seus contemporâneos, chegaríamos provavelmente à conclusão de que os escritos de Martin Heidegger são de pouca relevância e abrangência em seus questionamentos. Nomes franceses da época, hoje em dia muito celebrados e adotados por acadêmicos, artistas e intelectuais sem patente, como é o caso de Derrida e Lacoue-Labarthe, dedicaram boa parte de suas obras a explorar a filosofia heideggeriana e sua ligação com o nazismo. Não é como se não tivessem dado atenção ao seu pensamento: toda a questão ontológica que Heidegger tem o mérito de retomar de maneira completamente original e fundadora fica evidente quando se fala, por exemplo, de différence e différance. É o que sabiamente aponta Giorgio Agamben em nota de Estâncias: “Assim como boa parte do pensamento francês contemporâneo, também o de Derrida tem seu fundamento, mais ou menos declarado, em Heidegger.”[3] Ainda assim, está sempre tudo mais ou menos declarado. Só se tematiza e explora explicitamente Heidegger quando se fala de — nazismo.

Em conseqüência e em paralelo a tal movimento se dá o contarem-se causos e acasos da história da filosofia. A figura do comentarista parece em nossos tempos ter se aproximado do comentarista esportivo e do colunista social — talvez pela coincidência do nome, talvez pelos títulos e posições acadêmicas dos fofoquistas —, e comentar pensamento se igualou em mérito a comentar o percurso de vida. Autores que ora se debruçam sobre a questão do humano e seus desdobramentos — e aqui não queremos questionar a propriedade de tal se debruçar e se ele não estaria causando certa tonteira de pensamento em quem se debruça — dedicam também seu tempo e sua tinta de caneta a escrever esse tipo de coisas, e nós nos debruçamos sobre esses escritos — talvez em busca de algum pensamento, talvez pelo sentimento de curiosidade semelhante ao que sentimos ao folhear a revista Caras.

Essa curiosidade pela banalidade não tem por si nada de condenável. Aliás, quem ousa condenar nesses tempos em que o ato de condenar parece ter sido tudo que restou de condenável? O que nos parece preocupante — e mais uma vez cedemos ao termo politicamente correto — é que tudo é publicado e considerado filosofia porque foi escrito por filósofos. E quem ousará dizer o que é e o que não é filosofia nos dias de hoje, em que nada se pode dizer que é e que não é porque vale tudo no terreno da subjetividade? Elizabeth Roudinesco, sobre Lacan — e não sobre seu pensamento, que faz suas aparições em seu texto apenas para ilustrar sua relação pessoal com Heidegger e Jean Beaufret —, narra:

Cuando Jean Beaufret se dirigió a la calle de Lille, se encontraba en un gran desaliento. Su amante, en cura con Lacan, acababa de abandonarlo. Lo había conocido un año antes durante una cena en la que, justamente, Lacan estaba presente con Sylvia. Después había tenido con él una breve relación a la que el amante puso término cuando se dio cuenta, durante el análisis, de que Lacan se interesaba un poco excesivamente en Beaufret. Más tarde, el amante dejó también, por lo demás, a su analista. La cura del filósofo empezó pues bajo los auspicios de un embrollo transferencial bastante extraño. Beaufret iba hacia Lacan porque era el analista de su amante, y Lacan dedicaba una atención particular a Beaufret debido a la relación privilegiada que éste mantenía con Heidegger.

(...)

Siete años más tarde [Lacan] envió a Heidegger sus Escritos con una dedicatoria. En una carta al psiquiatra Medard Boss, éste comentó el suceso con estas palabras: “Seguramente usted también ha recibido el grueso libro de Lacan (Écrits). Por mi parte, no logro por ahora leer nada en ese texto manifiestamente barroco. Me dicen que el libro provoca un remolino en París semejante al que suscitó antaño El ser y la nada de Sartre.” Unos meses más tarde, añadía: “Le envío adjunta una carta de Lacan. Me parece que el psiquiatra necesita un psiquiatra.” Ésa era pues la opinión que Heidegger tenía de Lacan...

Todavía una última vez, al enterarse de que el filósofo estaba enfermo, Lacan viajó a Friburgo, en compañía de Catherine Millot, para exponerle su teoría de los nudos. Habló abundantemente y Heidegger guardó silencio.[4]

Jornalistas competentes, raros ou não, existem. Curiosamente, os meios de publicação online facilitam que conheçamos a seriedade de seus trabalhos, ainda que não necessariamente lhes provejam de meios de subsistência razoáveis como o fariam publicações mais institucionalizadas, por assim dizer. Essas, aparentemente, têm cada vez menos espaço para jornalismo sério, pensado, responsável, e preferem ocupar suas páginas com celebridades, escândalos, tragédias. Mais curioso, no entanto, nos parece existirem espíritos que se disponham a escrever sobre essas banalidades. Não podemos aqui condená-los ou ainda dizer que são incompetentes que só sabem fazer isso. Até porque o jornalismo é outro desses terrenos livres em que ninguém ousa dizer o que cabe e o que não cabe — quanto menos em nossos dias em que o sujeito por pouco não resolve quando o sol há de nascer.[5] Sejamos generosos e pensemos apenas que, em tempos de Paris Hilton e Britney Spears, ser jornalista ficou um tanto mais fácil.



[1] Usamos aqui o itálico na tentativa de apontar o uso despreocupado do termo, que sempre traz consigo uma injustiça ao fenômeno trágico, cuja dimensão não pretendemos aqui abordar. Cabe apontar, no entanto, que não fomos nós os inventores do mau uso, nem seremos os últimos a fazê-lo, como se vê, por exemplo, nas recentes reflexões filosóficas a respeito de Auschwitz.


[2] Não é bem esse nosso ponto de vista. Acreditamos haver algo observável e verificável, para nosso horror ou deleite — afinal duas faces do espanto —, na nudez do rei. Nossos tempos, no entanto, não são de espanto; nada surpreende afinal a quem de antemão já sabe da nudez e dos dotes do rei.


[3] Agamben, Giorgio. Estâncias — A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 247.


[4] Roudinesco, Elizabeth. “Lacan - Esbozo de una vida, historia de un sistema de pensamiento”. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar/comentarios/roudinesco.htm , acessado em 09/12/2008.


[5] Cf. Buarque, Chico. “Apesar de você”. Canção do disco Apesar de você, 1970.