A loucura de Andrei em O Monge Negro

“Andrei Vassilievitch Kovrin, magister, sofreu um esgotamento que lhe arruinou os nervos.” (TCHEKHOV, 1987, p. 13) É essa a frase inicial de O Monge Negro. Nela, se nos apresentam dois fatos, o primeiro dos quais é o nome do protagonista da história. O segundo é seu estado de saúde; somos levados a crer que algo não vai bem. São esses os dois pontos-chave que procuramos debater no presente texto: Andrei Vassilievitch Kovrin e não a sua, mas a (in)sanidade como uma suposta percepção inadequada da realidade.

É no primeiro capítulo também que conhecemos as personagens principais, bem como o cenário em que se desenvolve boa parte da narrativa. Dos primeiros, são destacáveis três: Andrei, o magister esgotado mentalmente; Iegor Semionovitch Pessotski, conhecido horticultor russo, tutor do órfão Andrei, a quem este deve sua educação; e, finalmente, Tânia Pessotski, filha de Iegor. Assim que seu problema se manifesta, Andrei é aconselhado a passar uma temporada no campo e, coincidentemente, recebe um convite de Tânia para um tempo em Borissovka, a propriedade dos Pessotski. Diz-nos o livro que Andrei aceitou o convite, “ que precisava mesmo mudar de ares.” (Idem) Por que se distancia, contudo, um homem de seu cotidiano, com base em um esgotamento nervoso? Deixemos de lado esta questão para retomá-la mais tarde.

Voltando à descrição do cenário, podemos dizer que quase tudo se passa em Borissovka. A propriedade é repleta de jardins, hortas e pomares criteriosamente ordenados por mãos humanas:

A parte ornamental do jardim, que Pessotski chamava desdenhosamente de “insignificância”, produzia em Kovrin, quando menino, uma impressão fabulosa.

(...)

Havia belas árvores simétricas, de troncos eretos como os das palmeiras.

As árvores se dispunham como peças de xadrez, em linhas retas, qual fileiras de soldados; e essa pedante regularidade, somada à altura igual, dava ao jardim um ar monótono, até cansativo. (TCHEKHOV, 1987, p. 16-7)

Constatamos, em palavras como “simétricas”, “eretos”, “linhas retas” e “fileiras de soldados”, o caráter imponente e rígido da organização dos jardins e, sobretudo, o efeito que tem este sobre o ânimo de todos na casa. É de se notar que Semionovitch envolve a todos em seus cuidados – muitas vezes obsessivos – com o jardim, chegando por vezes a agredir empregados, tamanho é seu zelo pela perfeição e uniformidade. Na ameaça de geada, o jardim vira assunto principal na mesa do jantar. Tânia e Andrei acabam por também se envolver eventualmente em tais obrigações, mas é sobre ele, Andrei, que a situação parece exercer um peso maior, como vemos em momentos posteriores.

O caráter obcecado de Iegor Semionovitch, ainda, segue se manifestando em diversos momentos, inclusive no momento em que Tânia deixa escapar, enquanto conversa com Andrei, uma reclamação:

Infelizmente, nossos conhecidos são gente aborrecida demais, e assim mesmo são poucos. A conversa é sempre jardim, jardim, jardim e nada mais. Caules, madeiras – riu, – maçãs de sementeira, parasitas, brotos, podas, enxertos... Toda a nossa vida gira em torno do jardim, não sabemos sonhar senão com maçãs e pêras. (TCHEKHOV, 1987, p. 20)

Iegor, preso em suas idéias rígidas e regulatórias, não compreende a natureza essencialmente desenfreada da realidade ao seu redor, e insiste em um esforço em prol de seu jardim ideal. Não percebe ele que o real é fugidio, surpreendente e aparadigmático em sua diversidade e imprevisibilidade de manifestações. Deste modo, persiste em normatizar a natureza ao seu redor, atividade na qual constante e previsivelmente se frustra. É ele que, inclusive, sugere a Andrei que ficaria muito satisfeito em vê-lo casado com Tânia, pois nenhum outro genro seria capaz de levar adiante os trabalhos do jardim como ele.

Iegor, horticultor, possui alguma força que o move no trabalho com o jardim. Algum impulso o leva a trabalhar na modificação da natureza, e isso, ao que tudo indica, lhe proporciona um sentimento de satisfação pessoal, como se o cuidado do jardim fosse um caminho de vida. Isso não seria algo benéfico? Não é possível que pessoas se interessem por uma atividade e dela recebam grande alegria? A princípio, isso seria algo benéfico. O que o leva à frustração? Mais do que isso, o que faz com que seu esforço se estenda aos membros da família, e ele acabe por ambicionar o controle do destino de todos ao seu redor? Parece-nos que seu relacionamento com a realidade se prende a uma relação de domínio, mais que de escuta. Iegor escuta, é claro, mas que tipo de escuta tem lugar? Ele não dialoga com a realidade no sentido de reconhecer seu vigor na natureza. Seu esforço é de modificaçãoassim como o é o esforço poético – do agir – da arte. Sua escuta, no entanto, não aponta para a verdade da natureza, mas somente para sua vontade de controle e poder. A virtude poética, aqui, se apresenta também enquanto vício, pois não busca diálogo, e sim comando.

No segundo capítulo, persiste o cotidiano tedioso e opressor. Contudo, uma noite, algo acontece a Andrei após ouvir uma canção. De imediato é tomado pela idéia fixa de uma lenda a respeito de um monge, vestido de negro, que, segundo se conta, andaria pelo mundo em diversos lugares ao mesmo tempo. Dias depois, Andrei caminha pelo campo. Em que constitui um campo? O campo é um lugar de caminho, um lugar de exploração de possibilidades. Em meio ao selvagem, ao natural, o homem se põe à mercê da realidade, o homem se posiciona num modo de escuta e diálogo maior do que aquele que lhe permite seu cotidiano. Andrei avista o Monge Negro da lenda. Alegre por ter encontrado o ser que tanto o fascinava, deixa de estar taciturno e compenetrado em seus estudos; sofre uma mudança. Passa a se mostrar empolgado e satisfeito. Isto se intensifica mais tarde, quando as aparições do Monge se tornam mais e mais freqüentes, e com ele Andrei desenvolve diálogos que considera interessantíssimos e inspiradores para seu pensamento filosófico. Casa-se, afinal, com Tânia. Entretanto, assim que fica sabendo de suas visões, ela o recomenda o tratamento psiquiátrico que daria fim às aparições do Monge. Mais uma vez nos deparamos com uma atitude prescritiva. O que os leva a tal? O que faz com que um grupo de pessoas não se ponha a compreender a diferença, mas a repreendê-la? Parece-nos que a motivação dessa atitude se encontra alhures: nossos personagens pensam por meio de conceitos inevitavelmente generalizadores. Estes, pois, não se põe à escuta da diferença, que termina classificada por exceção. E, seguindo por esse caminho, a direção provável a se tomar é a de tentativa de mudança do outro. E que tipo de mudança é essa? Certamente não é motivada por reflexão, mas pela comparação com um parâmetro a que se deve adequar. O procedimento se assemelha àquele tomado por Iegor com seu jardim e seus familiares.

Após tratamento, o Monge desaparece para só reaparecer no leito de morte de Andrei, que deixa de ter visões. Parece, porém, que as visões fazem-lhe falta, e Andrei se queixa:

Por que... por que vocês me curaram? Poções de brometo, ociosidade, banhos quentes, vigilância, um terror idiota a cada garfada, a cada passo... tudo isso vai acabar fazendo de mim um idiota. Fiquei transtornado da cabeça, deu-me a mania de grandeza, mas com isso tudo eu era jovial, ativo e até mesmo feliz, era interessante e original... Agora me tornei racional e sólido, mas igual a todo mundo: sou uma mediocridade, para mim é difícil viver... Ah, como vocês foram cruéis comigo! Eu tinha alucinações, mas a quem isso fazia mal? Pergunto: a quem fazia mal? (TCHEKHOV, 1987, p. 68)

É esse o depoimento de Andrei, curado, pouco antes de largar sua esposa. Devemos questionar aqui, por que ele, com suas visões, é considerado inadequado e é obrigado a se livrar de sua “perturbação”. Sua fala demonstra certa lucidez e, mais que isso, aponta para questões: Andrei se considerava louco? Até que ponto o tratamento o desviou de seu caminho? O que é essa perturbação? O que é a loucura? Segundo CHEVALIER (1990), no verbete Louco do Dicionário de Símbolos,

O inspirado, o poeta, o iniciado parecem loucos muitas vezes, por algum aspecto do seu comportamento, que escapa às normas habituais. Nada parece mais louco do que a sabedoria para aquele que não conhece outra regra que o bom-senso. (...) O louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade. Segundo o Evangelho, a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de Deus e a sabedoria de Deus, loucura aos olhos dos homens. (pp. 558-9)

Seriam os loucos, portanto, portadores de alguma espécie de dádiva divina? O que nos diz Chevalier quando aponta alguémfora dos limites da razão”? A razão, do latim ratio, é uma das traduções do grego lógos. Não é a tradução, mas uma das, e, sobretudo, a predominante em nosso tempo. Se pensarmos, no entanto, na história da palavra, o que nos diz o lógos? Para tal, citamos Heidegger (1978) que, em suas reflexões sobre Heráclito, o relaciona ao verbo légein:

légein significa: dizer e falar; logos significa légein, enunciar. (...) Mas também significa, tão cedo, e ainda mais originariamente, e por isso desde sempre, e também na significação acima citada, o que entendemos com o “legen” do alemão, que soa parecido: deitar e estender diante. O que impera aqui é o recolher, o legere do latim, como colher no sentido de ir pegar e recolher. Légein significa propriamente o pensar e apresentar o que recolhe a si e às outras coisas. (p. 112)

Está o lógos, assim, intimamente relacionado à realidade, como condição básica de existência desta em seu apresentar e manifestar-se. O lógos não é estático, como os conceitos, e não se prende a eles, assim como a realidade, em um impulso constante de desvelar e velar. O louco seria, desta forma, aquele que se não esqueceu do vigor originário do lógos em meio à regência da ratio? É esta a sabedoria de Deus que parece loucura aos olhos dos homens? Sua inspiração seria a que o conduz ao caminho de escuta da sabedoria divina na realidade que o cerca?

Como dito anteriormente, a loucura se configura no fato de que Andrei vê algo que os outros não vêem; tem uma percepção da realidade que difere da dos outros. E a partir de que ponto isso se constitui como um problema? Estaria de fato o problema na percepção de Andrei ou na dos outros? Quem está apto a efetuar tal julgamento?

Sobre a realidade, podemos dizer que, acompanhando a tomada de lógos por ratio, nossa concepção daquela é reduzida ao real racional: o real do bom senso do qual o louco se desvincula. Só consideramos real o comprovado pela razão, pelo método e pela experiência. Mas não seria isso uma redução da dimensão do real ao plano do conhecido? Não estaria nossa concepção deixando de lado o plano do desconhecido-possível? O próprio Monge Negro, ao conversar com Andrei, nos propõe:

– Mas você é uma miragem – disse Kovrin. – Por que está aqui, sentado neste lugar? Isso não condiz com a lenda.

­– Dá no mesmo – respondeu o monge mansamente, voltando o rosto para Kovrin. – A lenda, a miragem, eu... Tudo é produto da sua imaginação excitada. Eu sou um fantasma.

– Quer dizer que não existe?

– Pense o que quiser – respondeu o monge, sorrindo ligeiramente. – Eu existo na sua imaginação, e como sua imaginação é parte da natureza, devo existir também na natureza. (TCHEKHOV, 1987, p. 46)

O que existe na mente, por existir na mente, é menos real, menos natural? Parece-nos que não. Por que então a rotulação de Andrei? Ao que tudo indica, suas visões não causavam dano a ninguém. Por que então isola-lo como doente sem sequer considera-lo, primeiramente, enquanto indivíduo? O impulso classificatório-prescritivo não permite a diferença. Assim como Iegor remodelava suas plantas compulsivamente, a família condena Andrei a se adequar a um padrão. Mas de onde vem esse padrão? Em que momento a loucura passou a ser algo negativo?

Sócrates, no Fedro, nos apresenta um outro modo de vê-la:

Se se pudesse afirmar, sem restrições, que a loucura é um mal, teria falado bem, mas na realidade os maiores bens vêm-nos por intermédio da loucura, que é, sem dúvida, um dom divino. De facto, é no estado de loucura que a profetisa de Delfos e as sacerdotisas de Dodona têm proporcionado à Hélade inúmeros benefícios, tanto de ordem privada como pública, enquanto, no seu bom senso, a coisa de pouca monta ou nada se reduz o que fazem. E se me referisse à Sibila e a tantos outros que, mercê da arte mântica devidamente inspirada, predisseram variados factos a muitas pessoas, mantendo-as no recto caminho para o futuro, iria alongar-me demasiado a falar de coisas evidentes a todos. (PLATÃO, 1997, p. 57-58)

Constatamos que a loucura nem sempre foi discriminada. A necessidade do discurso de Sócrates, contudo, nos leva a supor que sua fala respondia a um pensamento oposto: se rebaixavam os loucos a seu tempo. E aonde nos leva a classificação?

Platão prossegue classificando a loucura em quatro tipos: a dos fisicamente incapacitados, a dos videntes e profetas, a dos músicos e, finalmente, a dos amantes. À exceção da primeira, as loucuras se apresentam de forma bastante produtiva e importante. A clarividência, a música e o amor eram fundamentais para seu mundo. Mas não é o mundo grego clássico ainda o nosso? Até que ponto nosso modo de pensar-viver se encontra arraigado àquele?

Se pensarmos em Andrei, em que loucura o enquadraríamos? Suas visões lhe anunciam fatos importantes sobre seu futuro e o da humanidade, levando-o a profundas reflexões. Mais que isso, abrem-lhe novas possibilidades de caminho-futuro. Em relação à loucura dos músicos, até que ponto Andrei a ela se vincula? A princípio, ele não é instrumentista ou cantor; a única menção à sua experiência musical se dá na ocasião em que atende ao sarau. No entanto, é ele um pensador. O pensador não é aquele que se coloca à escuta da realidade, como o filósofo? A distinção entre filosofia e arte, sabemos, nem sempre existiu; pensadores como Heráclito e Parmênides registravam seu pensamento em versos. Pensamento e reflexão são facetas da filosofia, tão relacionada às musas quanto a música: são caminhos de pensamento, criação e escuta igualmente poéticos. Enfim, o amor. O amor? O que ama Andrei? Tânia? O que é o amar? O termo grego para amar, phílein, talvez venha em nosso auxílio. Além de amar, ele também se traduz por tender a, unir-se a, direcionar-se a. Não é Andrei um amante do caminho? Não seria o amor essa loucura que o faz seguir adiante, que o faz viver? Andrei ama o saber, e, com isso, não pensemos em um sentido erudito empobrecedor. Nosso personagem ama o saber porque se posiciona a escutar e dialogar: com a realidade, o Monge inclusive. Andrei tem o amor como força motriz e originária do caminhar, e é o amor que o leva para além do bom senso, pois seu caminho, sua busca, direciona-se à sua realização – e não à adequação.

A classificação é, por si, ineficaz. Soluciona aparentemente o problema de quem convive com o louco, mas não resolve o louco enquanto sua aparente perturbação permanece inabalada; ele passa a pertencer a uma categoria universal e sua individualidade é, assim, desprezada. Perguntamo-nos, portanto: até que ponto é válido rotular o louco como louco? Não somos todos loucos à medida que buscamos nosso caminho individual? E, se não somos, ao menos não deveríamos ser? A perturbação não seria o espanto do homem assombrado pela realidade? Não é ela que o direciona a seu destino? E aquilo que nos direciona a nosso destino não é justamente o amor?

Ainda que de forma otimista, a mera catalogação parece não dar conta do real. Sobre isso, nos diz a psicanálise em PASSOS (2002):

O diagnóstico de esquizofrenia e a marca identificatória que daí advém correspondem a uma espécie de morte simbólica. (...) Ouvir cuidadosamente cada paciente, reconhecer seus ditos como portadores de um saber de si foi o caminho da psicanálise e trouxe novas perspectivas para a psiquiatria. (...) Reduzir o tratamento à medicação, ao confinamento ou à aplicação de um saber estabelecido como verdade é desconsiderar uma subjetividade (...).

O louco é portador de um saber. Tal assertiva nos leva a questões que podem guiar nossa conclusão. Que não seja, entretanto, uma conclusão conclusiva. Que seja uma conclusão que nos leve a repensar o caminho do louco e os nossos caminhos de pensamento, vida e amortermos que enumeramos pelos simples fato de ocorrerem separadamente em nossa língua, que acreditamos estarem profundamente unidos. Sabemos que o louco nos chama à escuta de sua resposta a uma escuta – experiência – particular da linguagem que, em sua singularidade, nos causa estranhamento. Seu pensamento parece singular, mas até que ponto isso constitui erro? A singularidade não seria o curso natural de nossa maior busca? Será que nos encontramos privados do caminho primordial do viver? Aonde tal caminho desencaminhado nos leva? A resposta a essa pergunta pertence ao não-saber tanto quanto a pergunta em si. Andrei nos anuncia algo, contudo, ao se comparar a outros loucos, quando diz:

Como eram felizes Buda, Maomé e Shakespeare, a quem seus bondosos parentes e médicos não curaram do êxtase e da inspiração! – disse Kovrin. – Se Maomé tivesse tomado brometo de potássio para os nervos, trabalhado duas horas por dia e bebido leite, esse homem assombroso não teria deixado atrás de si mais que seu cachorro. Médicos e parentes bondosos se esfalfam para tornar cretina a humanidade, e tempo virá em que a mediocridade passará a ser considerada gênio, e a humanidade perecerá. (TCHEKHOV, 1987, p. 68)

Andrei nos aponta para a importância de seu dizer em sua diferença. Mais que isso, ele denuncia um possível desnorteio do qual padeceríamos nós, dominados pela leitura da ratio e esquecidos do lógos se manifestando ao nosso redor. No que toca nossa individualidade, o louco se destaca enquanto prescinde do bom senso, e deixa que sua peturbação-espanto o guie. O louco nos indica e demanda uma escuta atenta da linguagem que nos rodeia e nos permite a existência, fundamental para a persecução de um caminho plenamente humano enquanto pensante e poético.


Bibliografia

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 3a edição, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências: Lógos. Trad. Ernildo Stein. In Os Pensadores: Os Pré-socráticos. São Paulo: Editora Abril Cultural, 2a edição, 1978.

PASSOS, Marci Dória; Cavalcanti, M. T.; Ribeiro, B. T.. Esquizofrênico para sempre? In: Luiz Paulo da Moita Lopes; Liliana Cabral Bastos. (Org.). Identidades - recortes multi e interdisciplinares. 1 ed. Campinas: Mercado de Letras Edições e Livraria LTDA, 2002.

PLATÃO. Fedro. Lisboa - Portugal: edições 70, 1997.

TCHEKHOV, Anton Pavlovitch. O Monge Negro. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Um mergulho na experiência da canção - A poética de Blake em Songs of Experience

“Introduction”, de Songs of Experience, em um diálogo poético, i.é., uma interpretação norteada pelo cuidado com o texto a partir das questões que este nos suscita. Em uma reflexão com o poema, buscamos um distanciamento do habitual estudo biográfico-cultural e investigamos o sentido da “voz do Bardo”, propondo a presença de um pensamento meta-poético na palavra de William Blake. A obra fala de linguagem? O que é o “Verbo Sagrado”? O que torna a “Alma indolente”?


INTRODUCTION (S.E.)
 
Hear the voice of the Bard!
Who Present, Past, and Future, sees;
Whose ears have heard
The Holy Word,
That walked among the ancient trees,
 
Calling the lapsed Soul,
And weeping in the evening dew;
That might control
The starry pole,
And fallen, fallen, light renew!
 
"O Earth, O Earth, return!
Arise from out the dewy grass;
Night is worn,
And the morn
Rises from the slumberous mass.
 
"Turn away no more;
Why wilt thou turn away?
The starry floor,
The watery shore,
Is given thee till the break of day." (BLAKE 2005: 97)
 
INTRODUÇÃO (C.E.)
 
Ouve a voz do Bardo
Que vê o Presente, o Futuro e o Passado!
E tivera escutado
O Verbo Sagrado,
Que entre velhas árvores houvera vagado,
 
Chamando a Alma indolente
E chorando no orvalho cadente
Que poderá controlar
O pólo estelar,
E na relva, sua luz renovar!
 
“Ó Terra, retorna agora!
Ascende do orvalho luzente!
A  noite foi-se embora
e nasce a aurora,
surgindo da massa dormente.
 
Não mais te evadas:
Por que fugir?
A grama estrelada,
A praia alagada,
A ti são dadas até o dia surgir”.(IDEM 2005: 96)


O poema se chama “Introdução”, lembrando que introdução é um conduzir ao interior. No caso, pensamos que o o poema nos conduz ao interior do livro “Canções da Experiência”, e, assim, resolvemos a questão. Mas, além disso, é possível supor que a “Introdução” nos introduza às próprias canções e que, a partir dela, uma leitura de cada poema no livro – e talvez de outras canções de experiência – possa ser feita. Cabe, agora, perguntar: o que são propriamente canções de experiência?

Canções vêm do verbo cantar, em latim, cantare, intensivo do verbo canere. Ambos dizem cantar, mas supor que uma tradução a partir de nossa visão de mundo possa dar conta do sentido vocabular latino seria preguiçoso e desrespeitoso com o próprio poema. O canere latino, mais que apenas fazer sons ou melodias com a boca, era indicador da experiência do mágico e do divino. Se em canere se realiza o celebrar, em cantare – intensivo – temos exaltar. Na canção do Bardo se exalta, se comemora, se festeja e se vive a experiência poética.

O que seria, portanto, uma canção, enquanto celebração e exaltação, da experiência? Ex-peri-ência tem em si -peri-, grego, que quer dizer em volta de, ao redor. É de -peri- que se formam palavras como perímetro, o limite ao redor de uma forma, ou, melhor dizendo, a própria forma. Ex-, anteposto a -peri-, diz para fora, para o alto, enquanto movimento. A experiência é o movimento para fora do perímetro, do limitado, em direção ao ilimitado. Não em uma concepção metafísica que busque um mundo ideal no além supra-sensível, mas no movimento natural do humano de, na experiência, se colocar sempre do limitado em busca do ilimitado, do sido para o vir-a-ser, do saber para o não-saber.

A relação entre canções e experiência, a partir daí, se coloca em uma ambigüidade interessante na medida em que nos oferece duas formas de encarar o estabelecido pela preposição de. As canções podem ser a exaltação da experiência passada/experenciada ou então canções que, na exaltação, gerarão experiência. Mas não são tais dimensões – passado e futuro – inter-excludentes? Vejamos o que nos tem a dizer o poema.

Hear the voice of the Bard! se apresenta como um verso simples ao nos convidar – ou ordenar – a ouvir o Bardo. Mas onde estará ele para que o ouçamos? Será o Bardo William Blake? Será ele Jesus? Será ele Roberto Carlos? Como os poderemos ouvir? Ouçamos: o Bardo fala, mas ouvimos sua voz. Tanto é que, posteriormente, não temos uma descrição de seu corpo ou seus sons, mas, entre aspas, sua fala. E o que é, propriamente, a voz? Em latim, uox tem sentido próximo ao de nossos dias: é o som da fala, mas também um convite. Indo mais longe, chegamos à raiz indo-européia wek-, que deu voz, uocare, chamar, e, em antigo alemão, giwahanen (mencionar, comemorar). A voz – do Bardo –, ao soar, nos fala de um convite à comemoração. E aqui, tomando comemoração pelo ato de co-memorar – de trazer, em conjunto, à memória, à presença – nos lembramos do título, das canções exaltadoras do movimento humano da experiência da presença.

Ao prestar atenção ao dono da voz – o Bardo –, con-firmamos esse horizonte. O Bardo, ao cantar, é o poeta, aquele que traz à presença o ausente, o guardião da memória. O Bardo, nas palavras da professora Idalina Azevedo da Silva, é o “senhor da festa”, na qual se faz a “repetição do repensar para uma nova instauração do legado da memória.”

Who Present, Past, & Future, sees, diz o poema. A concepção do Bardo no poema nos traz algo que nos é estranho e nos encaminha a pensar. A memória que o Bardo canta não é um amontoado de dados do passado. A memória que o Bardo e, por isso, canta, é Presente, Passado e Futuro. O Bardo, ao contar memória, traz à presença as três dimensões temporais que não estão, aqui, tricotomicamente distanciadas em algo morto e estático – o passado –, o momento que se vive agora – presente – e o que está por vir –futuro. A memória se dá, no poema, no movimento de trazer à presença do Presente e à vida o já conhecido e o a conhecer; por si só, constituindo experiência. A própria ordenação dos termos nos dá o que pensar. Não se encontram, no poema, linear e cronologicamente distribuídos em passado, presente e futuro. Vêm o Presente, o Passado e o Futuro. O uso das vírgulas, inclusive, nos permite pensar “Passado, e Futuro” como um aposto a “Presente”. E vejamos, aqui, não uma expressão de presente em oposição a passado e futuro pós-vírgula, mas ambos como fundamentação, enquanto ausência, do vir-a-ser presença do presente. E, da mesma forma, podemos fazer o caminho contrário, em que o presente é o lugar de convergência – e todo lugar é lugar de convergência (HEIDEGGER 2004: 26) – e presentificação dos passado e futuro ausentes.

O tempo de que fala o poema não é tempo cronológico, linear ou evolutivo. O tempo aqui é o do jogo perene entre permanência e ausência, desvelar e velar, em que sua qualidade não seja exatamente ser maior que a medida, mas não ter medida, por ser “sucessão” (LISPECTOR 1998: 44) de um instante para o outro.

Whose ears have heard / The Holy Word / That Walked among the ancient trees, diz o poema. Mas de quem são os ouvidos que escutam a Palavra Sagrada? Uma leitura habitual os ligaria ao Bardo, humano e ouvinte. Também. Mas podemos percorrer o caminho não-habitual, que não habita em fixo, mas encaminha o caminho ao estranho e desconhecido. Os ouvidos pertencem ao Presente. O presente tem os ouvidos enquanto os ouvidos habitam o presente. E, do mesmo modo, os ouvidos têm o presente enquanto o presente os habita, não nos esquecendo “que habitare (“habitar”) é um freqüentativo de habere (“ter”)”. (TORRANO 2006: 22)

Os ouvidos ouvem no presente enquanto o presente se apresenta e, nos ouvidos, recebe seu sentido, sem que se faça aqui, no entanto, um pensar subjetivo do humano como fundamento do real presente. O que se dá é que não podemos desvincular os ouvidos do presente ou o presente dos ouvidos, na medida em que os ouvidos compõem o acontecer do presente. “A percepção é um acontecimento em que o homem, nele acontecendo, entra no acontecer”. (HEIDEGGER 1999: 165) O pertencimento é, portanto, mútuo.

Os ouvidos não são o fim da Palavra Sagrada, assim, mas têm com ela seu sentido presente. O que é a Palavra Sagrada, porém? Costuma-se a encarar no sentido bíblico, mas busquemos um interpretar que não o exclua, ao ampliar-lhe o horizonte. O inglês holy (“sagrado”) vem do germânico halig, que diz intacto, inteiro, todo. Relaciona-se à raiz ad-2 que, por sua vez, diz puro e inteiro, também, e é da qual se origina o latim augere, dizer, criar, profetizar, gerar. Do augere vem o português autor, que podemos relacionar ao poeta, que diz, cria e gera a partir do sagrado. Voltando, portanto, ao Sagrado enquanto tema, já que dele nunca nos deslocamos de fato, nos perguntemos: o que é esse intacto intangível que contém, ou é, inteiro e todo? Costumamos pensar o intangível como algo no âmbito do divino e do desconhecido, espiritual, e de certa forma o podemos ver assim. O que halig como inteiro e todo problematiza é a visão do espiritual metafísico do qual a realidade se distanciaria.

O problema se constitui como entrave quando raciocinamos de modo a separar, platonicamente, nosso real do espiritual, considerado intangível. O que o Sagrado diz e se confirma na raiz indo-européia kailo-, é o que é puro, mas também brilhante. Essa origem Sagrada, portanto, é ausência obscura, mas também condição e proveniência da presença enquanto iluminar-se e, logo, dela não se destaca. Surge, assim, a importância de darmos atenção ao augere latino enquanto criar. O escuro desconhecido e ausente é a origem de todo o iluminado presente, ao qual o Bardo nos convida à audição, através de, em seu canto, iluminar o próprio obscuro na memória.

O canto de Blake nos chama a perceber isso na própria Palavra Sagrada, que, sendo sagrada, é parábola, do grego pará-bállein (lançar no meio). Proveniente do desconhecido obscuro, a palavra não só é dita, mas se diz enquanto se lança iluminada e luminosa – ou, simplesmente, brilhar – ao entre. Prova disso é que, no poema, não está ela, embora sagrada, em um local distante e intangível, mas caminhando entre as antigas árvores, que, antigas, são presentificação do passado.

Se, aqui, pensamos em Palavra Sagrada, considerando seu sentido bíblico, como Jesus, podemos conferir que não é esta uma hipótese absurda. Cristo, à diferença do Deus judaico destacado do universo material, é o Deus presente na Terra enquanto homem, corpo e espírito, com pensares e paixões fundamentalmente humanos. Como o Bardo, é ele uma imagem em que presença e ausência – Terra e Deus, como preferirmos – não são opostos antagônicos, nem é a carne suja e pecaminosa em contraste a um espírito limpo e divino, mas complementares enquanto unidade. Por isso holy, o sagrado, e whole, o inteiro, são um e o mesmo.

A segunda estrofe começa com Calling the lapsed Soul / And weeping in the evening dew; / That might control/ The starry pole, / And fallen, fallen, light renew! Revela-se aqui o que faz o Bardo: chama a alma indolente, faz-lhe um convite à experiência da canção. A alma é convidada porque não participa da canção, e, por isso, é lapsed. Em seu sentido moderno, lapse, ou lapso, em português, é uma falha de memória. Um conceito metafísico como esse pode, no entanto, ser aprofundado se mais uma vez pensarmos a memória na dinâmica entre o lembrar e o esquecer, entre presença e ausência poética. Lapse é degenerar. Mas como se degenera uma alma? De-generar significa descer (de-) para longe do gênero. Gênero é classe, mas também é origem, ao se relacionar à procriação, à geração, e ao próprio grego gyné, mulher, aquela que gesta. Degenerar é se distanciar da origem e da mãe. E a origem aqui não é um pré-histórico distante com o qual não temos ligação, mas sim o princípio que faz sermos o que somos. E a alma, o que é?

Alma em latim se diz anima, de onde vieram as palavras animar, animado. Não é ela algo distinto do corpo, mas o que o move e o que, com ele e nele, se move. Assim diz também o grego psyché, que é alma e respiração, sopro, o movimento de ir e vir dos pulmões.

A alma lapsed se degenerou. Indolente e apática, ela se separou do corpo no mundo que pensa corpo e espírito como estâncias apenas distintas, quando, não só são distintas, mas se apresentam sempre unidas, em uma dando-se a outra, complementarmente. Por isso a chama o Bardo, convidando-a para uma festa em que possa mesmo controlar o pólo estelar. E o que é pólo estelar?

Pólo é o extremo, a ponta, o limite. Pensemos, por exemplo, nos pólos do planeta Terra. O pólo do poema, porém, é um pólo estelar, ou seja, onde se encontram as estrelas. Mas como podem as luminosas e grandiosas estrelas, distantes no céu, alcançarem o homem? No poema, contudo, convergem no pólo terrestre como se isso fosse possível sem conseqüências catastróficas. Falta pensar que o homem, no Pólo Norte, no Pólo Sul, na França ou no Afeganistão, enxerga os astros, distantes, no divino céu, e os faz memória. Mais uma vez, não podemos separar a percepção do perceber. As estrelas e o pólo convergem no homem, ou, melhor dizendo, poderiam convergir, não se encontrasse a alma indolente. O pólo, no entanto, é também o pólo magnético do ímã que faz convergir, em si, o que lhe é próprio atrair. O pólo não é só a Terra, mas o próprio homem, dando sentido e convergência a céu e terra, não mais havendo entre eles um lapso, mas sendo a própria alma e o corpo as instâncias micro-cósmicas da unidade entre ser e não-ser, conhecido e desconhecido, espiritual e material.

O homem, não mais indolente ou apático, pode ser dono de si enquanto pólo de convergência de terra e estrelas, corpo e espírito. É a essa união que convida o Bardo, à celebração da palavra que se lança no entre, sem nunca se degenerar porque sempre tem em si sua origem. O homem em si é palavra, porque promessa da Linguagem. E, aqui, busquemos uma compreensão de Linguagem que não a compreenda, mas que seja por ela compreendida. Que não seja uma faculdade, humana, mas condição de manifestação e de habitação do homem, que, no convergir polar do local poético, presentifica seu corpo de memória. O homem, não degenerado, pode fazer, na Terra, se revelar e renovar a luz. A luz das estrelas, no homem, se renova e revela, ao conduzi-lo a seu sentido e origem em sua habitação: a Linguagem.

Nas terceira e quarta estrofes, o Bardo faz seu canto. Convida Terra ao retorno, ao surgimento de grama orvalhada, na manhã, com o fim da noite. Mas a Terra de que fala o Bardo não pode ser um mero planeta, já que esse não gira ou deixa de girar a depender de um convite. O próprio nascer da Terra, contudo, é dimensão que lhe dá o homem, e o convite, mais uma vez, é um aviso ao homem, em sua alma indolente e elapsada do corpo, para que vivencie a Terra.

The harmony of soul and body. (…) We in our madness have separated the two, and invented a realism that is vulgar, an ideality that is void. (WILDE 1985: 24)

Wilde, como poeta-Bardo que é, nos ajuda a compreender o poema. O convite à Terra é um convite a um novo homem, aqui compreendido não como um homem diferente de tudo que já tenha sido, mas novo enquanto aquele que guarda seu frescor originário. É um chamado – in-vocação – a um homem bipartido e esquizofrênico, degenerado, apático e indolente, para um caminho que o leve à novidade do frescor. Blake, o Bardo, chama-nos todos a escutar a Palavra Sagrada, a linguagem, o movimento de presentificação do Real – nunca em oposição ao espiritual. Se o homem de fato aceitar o convite, podemos mesmo supor o ascender de uma nova Terra e um novo homem saudável e dolente, na medida em que tem em si a dor e a angústia da identidade e da diferença de ser singular e é aguardado, acontecendo junto à Terra, pela grama e as estrelas. O homem, se não se desvia, tem tudo a si dado till the break of day. E till aqui não é apenas até enquanto prazo e limite cronológico, mas é a/para ao manifestar sentido, pois é na aurora, entre sombra e luz, entre noite e dia, entre esquecer e lembrar, entre ser e não ser, que pode o homem ser promessa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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a leitura do humano e o humano da leitura: uma abordagem poética

Nossa cultura é predominantemente escrita, como a de grande parte do mundo ocidental. Ou, melhor dizendo, essencialmente gráfica – já que não lemos apenas textos em línguas maternas ou estrangeiras, mas também imagens como fotos e vídeos. Somos diariamente rodeados de jornais, revistas, livros, e-mails, cartas, filmes, músicas e diversos outros tipos de texto que têm como função, a princípio, nos fornecer informação, nos informar, nos educar, nos comunicar algo. Tanto professores quanto alunos nos encontramos enredados em uma infinidade de dados que nos angustiam e nos apressam a ler, entender, compreender e apreender em sua enorme e inquietante inapreensibilidade.

Em meio a tanta pressa, passamos a agir de modo quase automatizado não só em nosso trabalho como em nossas vidas, e dificilmente chegamos um dia a nos fazer a pergunta que, ao menos aos educadores, deveria ser primordial: O que é o ler? E, ao questionar, é necessário compreender que não estamos na busca de uma resposta final, terminante e conclusiva. Dedicados a tal tipo de investigação já há centenas – quiçá milhares – de cientistas, lingüistas, pesquisadores e leigos ao redor do mundo, cada um com uma definição de leitura e de linguagem na ponta da língua, apenas aguardando a pergunta. E de que nos servem tais respostas? Conduzem a muitas práticas, todas possivelmente de eficácia comprovada estatisticamente. No entanto, nos perguntamos: as definições compreendem o humano? Será que partilhamos todos nós de algo que nos reúne enquanto espécie ao mesmo tempo em que nos distancia de outros seres? Ou seja: onde repousa nossa identidade com o humano e nossa diferença do não-humano? Seria isso algo científico e objetivo, como possuir certo órgão, certos genes em comum, células de determinado tipo? Ou será que o humano, além do que a ciência é capaz de medir, possui algo que não cabe em definições? O humano, antes de se tornar conceito, precisa se apresentar, e aquilo que se apresenta é sempre, a princípio, uma questão. O próprio método científico, ainda que pareça disso se ter esquecido, necessita de algo dado pela realidade a partir do qual possa propor uma hipótese. Mas será que nós mesmos nos queremos lembrar das questões?

No livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, acompanhamos parte da vida de uma família que vaga pelo nordeste do Brasil em busca de condições básicas de sobrevivência. Em certo momento, o filho mais velho da família interroga Vitória, sua mãe, pelo sentido da palavra inferno.

Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.

O Menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.

– Bota o pé aqui.

A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas:

– Arreda.

O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:

– Como é?

Sinhá Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.

– A senhora viu?

Aí sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.

O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia. (RAMOS, 2001, p. 54)

O primeiro fato a comentarmos se dá na curiosidade do filho. Como grande parte das personagens do livro, é analfabeto e nós o classificaríamos sem dificuldade como rude, e isso se dá mesmo no seu modo de falar parca e dificultosamente. Seu espanto ao ouvir a palavra inferno, no entanto, não é afetado pela falta de água, de comida, de educação. Sua curiosidade genuína é despertada pelo mero som de uma palavra, como em geral ocorre às crianças, e, por reação, passa a perguntar. Sinhá Vitória parece já ter ouvido falar alguma vez do tal inferno, mas sua resposta não satisfaz ao menino. Ele insiste na pergunta e questiona a proveniência da resposta da mãe (A senhora viu?), e acaba por tomar um cocorote.

As crianças – muitas vezes nossos alunos – estão em um lento processo de conhecer o mundo e perguntar por nomes e explicações. Por isso, nos perguntam com insistência; a maior parte de suas frases são interrogativas e não afirmativas. Passam, até, pela chamada fase do porquê, entre os quatro e cinco anos de idade, quando querem estabelecer para cada coisa uma causa e para cada causa outra causa infinitamente. E como respondemos a isso? Perdemos a paciência e evitamos as perguntas, mudamos de assunto, aplicamo-lhes cocorotes. Quase sempre, estamos preocupados em estabelecer respostas conclusivas às questões das tão sábias crianças que, privilegiadas, ainda não se deixaram dominar pelo hábito de tomar tudo por certo.

No presente texto, contudo, nos colocamos à disposição das questões, por acreditar que são o que temos de mais primevo em nossa experiência da realidade antes de sermos podados, punidos e criticados em nosso questionar. Desse modo, iniciamos a procura de um caminho que nos possa conduzir a algo para além do que já sabemos. E do que já sabemos? Para responder a essa pergunta, podemos percorrer brevemente nossas práticas de sala de aula, nas quais estão sempre implícitas, ainda que disso não nos demos conta, determinadas visões teóricas.

Em aulas de língua estrangeira, em geral, temos à disposição livros que, em suas páginas, nos proporcionam textos para trabalho em sala de aula. Mas que textos são esses? Em sua maioria, são textos problemáticos a partir da dificuldade que têm os próprios autores-organizadores de nos apresentar materiais originais e autênticos, já que o uso destes implica compromissos financeiros relativos a direitos autorais. Além disso, os textos não apresentam em si grande substância de pensamento, pois têm por objetivo inicial exemplificar, fixar e trabalhar um determinado ponto gramatical, grupo de expressões ou vocabulário-chave de uma aula. O puro potencial de serem atuais lhes é vetado pela larga tiragem e pela distância entre edições. Muitas vezes os assuntos precisam se manter interessantes por cinco, dez anos, até que seja lançada outra edição do material.

Se os textos já não nos trazem conteúdo, como se dá nosso trabalho com eles? O que muitas vezes trabalhamos são perguntas do famoso estilo copiar-colar, cujas respostas já se encontram prontas no próprio texto, esperando uma extração objetiva e simples. Dizemos aos alunos que o céu é azul para, em seguida, perguntar-lhes qual a cor do céu. Os alunos que nos habituamos a chamar de dedicados respondem prontamente: azul, é claro. Outros – quase sempre a maioria – permanecem silenciosos ou realizam tais tarefas apaticamente. Pudera! Uma máquina das mais rústicas poderia fazer esse trabalho por eles – e eles têm plena consciência disso, expostos que estão a inúmeras ferramentas de pesquisa de informação. Sabem que um simples clique em um site de busca como o Google pode encontrar a resposta de perguntas como essa. Que tipo de pensamento estamos estimulando? Onde está o humano de tais questões que pode levar cada um de nós e de nossos alunos a nos interessar por um texto? Nunca nos perguntamos, por exemplo, o que é o céu, ou seja: o que faz do céu céu. Seguindo esse modo de pensar, podemos nos perguntar: o que é um texto? Como responder a tal pergunta?

A princípio, consideramos textos conjuntos de palavras agrupadas em uma folha de papel por um determinado autor. As definições dicionarizadas variam, mas se atêm a esse mesmo tipo de texto. Mas um texto em um site não é um texto? Uma música que não se lê, mas se ouve, não é um texto? Um filme que se vê não é um texto? Uma foto, uma pintura, uma escultura, não são textos? As definições dicionarizadas não parecem dar conta da ambigüidade da palavra. Para tentar ir além, podemos buscar um caminho adiante através de um caminho para trás. Tal empresa não se origina em uma fé na superioridade do passado, um conservadorismo ou um saudosismo, mas no fato de que a linguagem como um todo é, em sua origem, um modo de indicar presença do que rodeia e proporciona o pensar ao ser humano. Como exemplo, tomemos a palavra discurso, que diz, gestual e concretamente, o ato de cursar, ou seja, caminhar, modificado pelo prefixo latino dis-, que nos indica movimento em múltiplas direções, além de um destacamento. O homem caminha destacado da realidade a seu redor? Sim e não. Ele se destaca da Terra para existir enquanto homem, mas, ao mesmo tempo, suas múltiplas direções se encontram sempre dentro da própria realidade, da qual não se pode livrar. Nesse caminhar, ele con-templa e habita seu caminho, e diz o que contempla: o caminho, o discurso. A partir daí, se desenvolvem sentidos secundários ­– mas não menos importantes – para o termo. Nossas línguas modernas, contudo, estão tomadas no nascedouro por uma funcionalidade de tal forma que, ainda que sejam línguas humanas, se deslocam para longe de nós ao se vincularem à funcionalidade técnica enquanto comunicação, informação e expressão. Tendo isso em mente, propomos uma visão do texto em sua dimensão lingüístico-gestual, tão bem comentada por Manuel Antônio de Castro no texto “A leitura e os diferentes textos”:

Texto vem do verbo tecer. Uma boa imagem para texto é rede. Olhando uma rede, nota-se logo um conjunto de linhas que se entre-laçam através dos nós. O entre-laçamento de palavras e orações forma um discurso. Este transmite idéias e conhecimentos, porque as palavras reunidas em orações vão formando um sistema de conceitos. Os diferentes textos ou discursos se estruturam na medida em que formam diferentes sistemas de conceitos. A dificuldade em ler e compreender está no desconhecimento dos conceitos por parte do leitor.

Muitas vezes até a maioria das palavras são semelhantes e as mesmas. O que muda? Cada passo na rede é complexo, porque ele sempre se bifurca, daí surgem diferentes sintaxes e conceitos. As palavras passam a ser altamente ambíguas. Tudo isso dificulta a compreensão da leitura.

Além das linhas e nós, há também os buracos da rede. Eles indicam a fluidez e ambigüidade das palavras, pois elas se movem dentro de vazios e silêncios. Isso é o mais difícil de perceber por parte de um leitor não habituado à reflexão e a muita leitura. Dependendo do discurso conceitual há uma ambigüidade crescente. O comunicativo é o menos ambíguo e o mais é o poético. É que neste os conceitos são substituídos pelas questões. Estas oferecem múltiplas possibilidades de leitura, todas válidas e verdadeiras, se resultam de um diálogo com a obra. (CASTRO, 2006)

O primeiro parágrafo citado nos fala dos discursos, conceitos e sistemas que, entrelaçados, compõem o texto. Em sala de aula, equivalem à informação e ao conteúdo que pedimos aos alunos que encontrem para responder nossas perguntas de compreensão. Não podem ser renegados, contudo, já que sem a compreensão de tais sistemas e jargões não chegamos sequer a uma primeira leitura. Porém, mais dois outros traços – intimamente conectados – do texto são mencionados, e são dois aos quais não costumamos dar muita atenção. O primeiro deles se refere à complexidade dos passos na rede, já que se bifurcam. O caminho percorrido no texto nunca é o mesmo, seja ele feito por pessoas diferentes, seja pela mesma pessoa em instantes distintos: os sentidos de nosso percurso variam. O segundo deles são os buracos na trama, e desses, comumente, nunca se ouve falar.

Enquanto falamos, enquanto lemos, não damos atenção ao silêncio. A princípio, tal colocação parece uma figura de linguagem retórico-estética, mas sua compreensão pode se dar de modo mais profundo. Há nela algo fundamental que, por ser negativo, não reconhecemos. É necessário, no entanto, nos lembrarmos: a palavra só se dá no silêncio. Como? Gestualmente: em meio ao barulho, não se fala e não se ouve. O silêncio se dá na proveniência da palavra e também na escuta do ouvinte/leitor. Além disso, no texto, podemos considerar que a palavra, enquanto diz (fio da rede/som), também não diz (buracos da trama/silêncio), ou seja: ao mesmo tempo em que nossa escolha vocabular delimita um campo semântico, abre também infinitas possibilidades de leitura. A ambigüidade do texto provém do fato de que o que está dito foi pensado, e a continuidade do processo ocorre quando pensamos naquilo em que o texto não pensa, em um diálogo que não se limita ao âmbito da comunicação.

Vislumbramos, até então, um pouco de como se pode dar uma aproximação entre leitura e aluno. Mas ainda é possível aprofundar: em que âmbito, então, se dá o diálogo da leitura? O que é a leitura? O que é o diálogo?

A leitura vem do verbo ler que, em latim, se diz legere, de origem grega: légein. O legere, como o légein, tem o sentido gestual de escolher, apontar, ordenar, colher, recolher e ainda caminhar através. Sua raiz, leg-, é a mesma da palavra moderna legume. A leitura, nesse sentido, se configura como um processo de apontar e colher, ao longo de um caminho, aquilo que nos interessa e nos alimenta. O que é aquilo que nos interessa e alimenta enquanto lemos? O que pode nos interessar e alimentar? Que tipo de objeto é esse que nos alimenta?

Se percorrermos o caminho etimológico da palavra inglesa read, temos também perspectivas interessantes. Além do tradicional decodificar, juntar palavras e fazer sentido, encontramos mais uma vez colher e recolher. E, em semelhança ao caminhar através, de legere, encontramos um sentido de presenciar e freqüentar. O que é isso que colhemos, recolhemos, presenciamos, e no qual caminhamos? De que modo isso nos alimenta? E se tornamos a pergunta uma negativa: que tipo de objeto não colhemos, recolhemos, presenciamos? A princípio, o objeto de ler parece ilimitado. Nos indica a leitura todo um modo de se relacionar com a realidade. Mas a realidade é um objeto? O caminho em que caminhamos é um objeto do qual somos sujeito?

Nosso modo habitual de relacionamento com a realidade é, sim, uma relação sujeito-objeto. Consideramos o homem o ser supremo que, através de suas inteligência e sabedoria superiores está apto a dominar e subjugar a realidade. Eventos como tsunamis, tufões, erupções vulcânicas, contudo, nos levam a reconsiderar nossa colocação subjetiva no mundo. Se pensarmos nos sentidos de caminhar e presenciar com cuidado, podemos imaginar que somos nós os objetos, em meio à enorme e estonteante realidade. Mas talvez isso seja apenas uma inversão de um modo de ver igualmente pouco cuidadosa. Encontramos, mais uma vez, na instância mítico-literária um modo diferente de encarar o homem. O “Mito de Cura” nos aponta para uma possível origem do homem que não é científica, antropológica ou matemática e, assim, não se baseia em um modo utilitário de se relacionar com a realidade através do binômio sujeito/objeto.

Quando Cura atravessava o rio, viu a lama argilosa e, cogitando, a ergueu e começou a fingir.

Enquanto deliberava sobre o que já tinha feito, Júpiter interveio. Cura rogou-lhe que lhe desse um espírito e facilmente o conseguiu.

Como Cura queria impor-lhe um nome a partir de si própria, Júpiter o proibiu e disse muitas vezes que lhe deveria ser dado seu nome.

Enquanto Cura e Júpiter discutiam, a Terra se levantou e quis que tivesse seu nome, por ter fornecido seu corpo.

Tomaram Saturno como juiz; imparcial, ele proferiu a sentença: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, na morte acolherás o espírito; e tu, Terra, por teres dado o corpo, acolherás o corpo; e porque Cura de fato fingiu o princípio, o terá enquanto estiver vivo. Porém, como há controvérsia entre vós a respeito do nome, que seja chamado homem, porque parece ser feito de húmus."

O mito nos apresenta uma diversidade de imagens a interpretar. Júpiter, o equivalente latino do Zeus grego, é diu-pater, o deus dos deuses olímpicos. É, no mito, a origem da dimensão desconhecida do divino que se manifesta em cada um de nós como espírito e que a ele retorna após a vida. Terra, por sua vez, representa o que é, em nós palpável, nosso limite corpóreo. São essas duas dimensões as que costumamos pensar em separado em binômios como corpo e alma ou matéria e espírito ou aparência e essência.

Mas o mito nos mostra algo que não costumamos pensar: Cura. O que é Cura, isso que nos tem enquanto estamos vivos? Em nossa língua portuguesa, cura é um método ou resultado de tratamento de saúde. Também pode indicar um modo de preparar, como com madeira ou queijo, e, ainda, o ato de matar o bicho-da-seda para usar seu casulo na confecção. Parecem significados distintos e independentes, a princípio, mas um olhar mais cuidadoso pode tentar uni-los. Em latim, cura quer dizer zelo, cuidado, preocupação, direção, administração, curadoria, tratamento. É, ainda, o termo que deu origem ao adjetivo curioso. Seríamos nós, humanos, guiados por Cura, curiosos? O que quer dizer curioso? Pode ser tanto cuidadoso quanto aquele que manifesta curiosidade, vontade de aprender, pesquisar e saber. O termo cura nos apresenta, de fato, uma quantidade assombrosa de possibilidades de leitura.

Cura é o processo e o resultado de um tratamento, de tentar levar alguém a seu estado óptimo. Não só alguém, mas algo, como o queijo, a madeira e o bicho-da-seda, atualizados pelo homem em sua potencialidade. E como a Cura nos tem? Somos tomados por Cura, por zelo, por cuidado, preocupação, direção. O homem é aquele que, curioso, se pergunta pela direção a tomar. O homem tem cuidado com o seu caminho – aquele que só ele pode fazer. Enquanto vivos, estamos todos necessariamente obrigados ao cuidado com nosso próprio sentido de vida. E seria isso algo de concreto como o resultado de um tratamento, algo que atingimos em algum momento? Supondo que sim, seríamos levados a crer que temos um objetivo final em vida. Alcançado, porém, tal objetivo, qual seria o sentido da vida? Seríamos seres com prazo de validade?

Não podemos nem queremos crer nessa possibilidade. Nosso sentido não se pode dar no dia em que morremos, pois isso nos levaria a uma vida despropositada por só encontrar sua plenitude quando não mais for vida. O sentido se dá no próprio caminho – que é sempre um caminho cuidadoso – ao pensarmos e dialogarmos com a realidade ao nosso redor. “A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante.” (RAMOS, p. 19) Fabiano, em Vidas Secas, é levado pela seca a prosseguir caminhando. Somos levados pela negação das condições a buscar condições, e nosso caminho, sempre singularíssimo, é de muito cuidado.

Na leitura, somos levados pelo negativo do saber – o não-saber – a pro-curar o saber. Mas podemos encarar tal relacionamento de forma subjetiva/objetiva? O texto – a realidade – existe apenas para nosso domínio? Ou será que é possível dialogar? Dialogar pressupõe sempre dois, e não dois hierarquicamente nivelados. São dois que se põe a falar e silenciar na pro-cura cuidadosa de seus caminhos. Assim, se colocam-se no mesmo patamar, uma relação sujeito/objeto não pode configurar o diálogo. Porém, é ainda essa relação que costuma reger nossas práticas de leitura.

Nossa leitura se guia pela informação. Estamos na busca das notícias, das novidades, de alguma forma de conhecimento que nos possa suprir e fortalecer em nossas convicções, nossos argumentos, nossa constituição intelectual. Mas será que é isso que nos constitui? Informar quer dizer dar forma a, fazer saber, dar instrução, dar caráter ou essência. Em latim, in-formar vem de forma, que indica aspecto, forma, formato, mas também regra, padrão, categoria, mais o prefixo in-: um movimento para o interior. Informar seria o ato de dar forma, padrão e categoria ao interior, ou, ainda, ir em direção ao interior para dar forma, categoria e padrão. Mas como pode esse interior, a nossa suposta essência, ser modificada por algo que nos é externo? O humano se dá pelo acúmulo de informação? O conhecimento e o humano são quantitativos? Ainda mais: como pode o nosso interior ser formado por categorias? Onde fica a nossa singularidade?

O significado dar instrução, de informar, nos remete ao modo como encaramos a leitura. Achamos que nos instruindo estamos nos fazendo um grande bem, assim como aos nossos alunos. A mesma palavra, contudo, nos indica algo que pode ir de encontro à singularidade. Instruir se assemelha a construir, mas o prefixo in-, mais uma vez, nos indica um movimento de fora para dentro. Em contraste, construir possui co-, que fala de um movimento conjunto. A chamada instrução que buscamos contém em si uma estrutura hierárquica e, como tal, tem por fim a manutenção da estrutura hierárquica.

No ramo da lingüística aplicada, muito se critica hoje em dia o modelo da educação que tem o professor como transmissor. Não mais se fala em instruir, mas em co-construir. De fato, cada vez mais cresce em nós a consciência de que nosso papel, enquanto professores, muito mais que de informar, instruir e formatar nossos alunos, é de educar. Percebemos, diariamente, que não há modo de transferir ou transmitir nosso conhecimento para os alunos. Ao menos por enquanto, tal tipo de transplante não foi inventado pela medicina. O papel do professor passa a ser, pois, o de auxiliador, com o qual a participação do aluno cresce em importância. Mas como buscar a chamada co-construção na leitura, então?

Numa possível resposta, nos acena o verbo interpretar. Costumamos pensar que interpretar é algo que fazemos com textos literários, poéticos, difíceis. Relacionamos a ação interpretativa a um decifrar algo cuja leitura se nos apresenta dificultosa, como se, caçadores da arca perdida, fôssemos incumbidos da missão de encontrar algum tipo de mensagem secreta, conteúdo escondido, tesouro abstrato. Nessa missão, seria o professor o sacerdote que, possuidor dos conhecimentos e dados necessários à leitura, decodificaria o texto, restando aos alunos o papel de concordar ou discordar – embora raramente o façam ou se interessem por fazê-lo. Aquilo de que nos esquecemos, no entanto, é que estamos o tempo todo, em nosso processo de leitura, fazendo escolhas (legere). O texto não é um objeto estático do qual retiramos significados. Se estamos à procura do diálogo, precisamos encará-lo como, se sujeito, tão sujeito quanto nós mesmos, junto com o qual construiremos sentido.

Interpretar é em latim interpretari. É a tradução do verbo grego hermeneuein, que significa: transmitir, trazer mensagens. O intérprete dos deuses é Hermes. Tanto hermeneuein como Hermes provêm do radical “...Wer ou Wre, que significa o falar e o dizer da língua enquanto interpretação do mistério” (Leão, 1977, 248). Interpretar é descer à dinâmica da história. Pela interpretação não se analisa ou esclarece algo no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro da razão e da expressão (discurso). Ao contrário: no questionamento interpretativo se elabora a diferença e identidade de língua e linguagem, discurso e discursividade. Interpretar é reconduzir algo a seu lugar de origem, à linguagem. (CASTRO, 1982, p. 80)

Nessa condução interpretativa, não se encaixam apenas os textos “difíceis”. Se queremos buscar o concreto das palavras, podemos nos perguntar pelo mistério do desconhecido (buracos da rede) em qualquer instância do conhecido (fios e cruzamentos). O inter-, de interpretar, é o que nos deu entre, em português. E em que sentido o entre entra na leitura? A preposição diz: a meio de, em relação de colateralidade, cerca de, por volta de, junto de e durante, entre outros. O interpretar se dá quando, em meio e por volta do texto, estamos com ele e com os demais leitores em relação de colateralidade. Mas como podemos estar em meio ao texto e, ao mesmo tempo, por volta dele? Não seria uma posição contraditória? Não, porque não é estática. Nosso movimento interpretativo se dá enquanto, dentro do texto, estamos fora dele, ou seja, em nós mesmos. Entre essas duas posições é que escolhemos com cuidado nosso modo de caminhar no texto.

E se, nesse movimento, nos lembrarmos da colateralidade e do durante, chegamos ao papel do professor. Em colateralidade, ele é aquele que pode instigar e questionar não em busca de respostas prontas, mas no sentido de levar os alunos ao desconhecido, fundamental ao conhecimento. Em nosso auxílio, vem o verbo educar. Tendemos a pensar que educar é sinônimo de instruir e informar quando ensinamos e transmitimos conhecimento aos nossos alunos. A etimologia do verbo, contudo, nos faz vislumbrar outras possibilidades.

Educar, em seu sentido originário e radical diz: ex- (para fora) e ducere (conduzir). Logo, educar é conduzir para fora o ser humano, e não levar para dentro conhecimentos externos. Só que esse “para fora” não indica um deslocamento espacial, como quem sai de uma sala para um pátio. O “para fora” indicia o vigor de manifestação pelo qual os homens, se apropriando de um tempo e de um discurso, deles fazem sua habitação, sendo o que são: seres ex-istentes. (CASTRO, 1982, p. 69)

Educar se apresenta, então, como o processo de trazer os alunos para fora ou para cima ou para além do que já são. Significa estimular a busca de cada um.

De certa forma, é essa a proposta desse texto. Poderíamos concluí-lo com a apresentação de sugestões práticas e receitas prontas, mas, agindo dessa forma, não estaríamos nos apropriando do educar como gostaríamos. Fiquem as palavras como uma provocação para que repensemos nosso método do instruir e tenhamos em mente o construir pelo educar, em um caminho respeitador das diferenças de cada um em que não precisemos, portanto, dispensar alunos como incapazes ou desinteressados por não se adaptarem a nossa instrução, mas sim ouvir e dialogar com cada um deles em seu modo especial de ser.


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