“Introduction”, de Songs of Experience, em um diálogo poético, i.é., uma interpretação norteada pelo cuidado com o texto a partir das questões que este nos suscita. Em uma reflexão com o poema, buscamos um distanciamento do habitual estudo biográfico-cultural e investigamos o sentido da “voz do Bardo”, propondo a presença de um pensamento meta-poético na palavra de William Blake. A obra fala de linguagem? O que é o “Verbo Sagrado”? O que torna a “Alma indolente”?
INTRODUCTION (S.E.)
Hear the voice of the Bard!
Who Present, Past, and Future, sees;
Whose ears have heard
The Holy Word,
That walked among the ancient trees,
Calling the lapsed Soul,
And weeping in the evening dew;
That might control
The starry pole,
And fallen, fallen, light renew!
"O Earth, O Earth, return!
Arise from out the dewy grass;
Night is worn,
And the morn
Rises from the slumberous mass.
"Turn away no more;
Why wilt thou turn away?
The starry floor,
The watery shore,
Is given thee till the break of day." (BLAKE 2005: 97)
INTRODUÇÃO (C.E.)
Ouve a voz do Bardo
Que vê o Presente, o Futuro e o Passado!
E tivera escutado
O Verbo Sagrado,
Que entre velhas árvores houvera vagado,
Chamando a Alma indolente
E chorando no orvalho cadente
Que poderá controlar
O pólo estelar,
E na relva, sua luz renovar!
“Ó Terra, retorna agora!
Ascende do orvalho luzente!
A noite foi-se embora
e nasce a aurora,
surgindo da massa dormente.
Não mais te evadas:
Por que fugir?
A grama estrelada,
A praia alagada,
A ti são dadas até o dia surgir”.(IDEM 2005: 96)
O poema se chama “Introdução”, lembrando que introdução é um conduzir ao interior. No caso, pensamos que o o poema nos conduz ao interior do livro “Canções da Experiência”, e, assim, resolvemos a questão. Mas, além disso, é possível supor que a “Introdução” nos introduza às próprias canções e que, a partir dela, uma leitura de cada poema no livro – e talvez de outras canções de experiência – possa ser feita. Cabe, agora, perguntar: o que são propriamente canções de experiência?
Canções vêm do verbo cantar, em latim, cantare, intensivo do verbo canere. Ambos dizem cantar, mas supor que uma tradução a partir de nossa visão de mundo possa dar conta do sentido vocabular latino seria preguiçoso e desrespeitoso com o próprio poema. O canere latino, mais que apenas fazer sons ou melodias com a boca, era indicador da experiência do mágico e do divino. Se em canere se realiza o celebrar, em cantare – intensivo – temos exaltar. Na canção do Bardo se exalta, se comemora, se festeja e se vive a experiência poética.
O que seria, portanto, uma canção, enquanto celebração e exaltação, da experiência? Ex-peri-ência tem em si -peri-, grego, que quer dizer em volta de, ao redor. É de -peri- que se formam palavras como perímetro, o limite ao redor de uma forma, ou, melhor dizendo, a própria forma. Ex-, anteposto a -peri-, diz para fora, para o alto, enquanto movimento. A experiência é o movimento para fora do perímetro, do limitado, em direção ao ilimitado. Não em uma concepção metafísica que busque um mundo ideal no além supra-sensível, mas no movimento natural do humano de, na experiência, se colocar sempre do limitado em busca do ilimitado, do sido para o vir-a-ser, do saber para o não-saber.
A relação entre canções e experiência, a partir daí, se coloca em uma ambigüidade interessante na medida em que nos oferece duas formas de encarar o estabelecido pela preposição de. As canções podem ser a exaltação da experiência passada/experenciada ou então canções que, na exaltação, gerarão experiência. Mas não são tais dimensões – passado e futuro – inter-excludentes? Vejamos o que nos tem a dizer o poema.
Hear the voice of the Bard! se apresenta como um verso simples ao nos convidar – ou ordenar – a ouvir o Bardo. Mas onde estará ele para que o ouçamos? Será o Bardo William Blake? Será ele Jesus? Será ele Roberto Carlos? Como os poderemos ouvir? Ouçamos: o Bardo fala, mas ouvimos sua voz. Tanto é que, posteriormente, não temos uma descrição de seu corpo ou seus sons, mas, entre aspas, sua fala. E o que é, propriamente, a voz? Em latim, uox tem sentido próximo ao de nossos dias: é o som da fala, mas também um convite. Indo mais longe, chegamos à raiz indo-européia wek-, que deu voz, uocare, chamar, e, em antigo alemão, giwahanen (mencionar, comemorar). A voz – do Bardo –, ao soar, nos fala de um convite à comemoração. E aqui, tomando comemoração pelo ato de co-memorar – de trazer, em conjunto, à memória, à presença – nos lembramos do título, das canções exaltadoras do movimento humano da experiência da presença.
Ao prestar atenção ao dono da voz – o Bardo –, con-firmamos esse horizonte. O Bardo, ao cantar, é o poeta, aquele que traz à presença o ausente, o guardião da memória. O Bardo, nas palavras da professora Idalina Azevedo da Silva, é o “senhor da festa”, na qual se faz a “repetição do repensar para uma nova instauração do legado da memória.”
Who Present, Past, & Future, sees, diz o poema. A concepção do Bardo no poema nos traz algo que nos é estranho e nos encaminha a pensar. A memória que o Bardo canta não é um amontoado de dados do passado. A memória que o Bardo vê e, por isso, canta, é Presente, Passado e Futuro. O Bardo, ao contar memória, traz à presença as três dimensões temporais que não estão, aqui, tricotomicamente distanciadas em algo morto e estático – o passado –, o momento que se vive agora – presente – e o que está por vir –futuro. A memória se dá, no poema, no movimento de trazer à presença do Presente e à vida o já conhecido e o a conhecer; por si só, constituindo experiência. A própria ordenação dos termos nos dá o que pensar. Não se encontram, no poema, linear e cronologicamente distribuídos em passado, presente e futuro. Vêm o Presente, o Passado e o Futuro. O uso das vírgulas, inclusive, nos permite pensar “Passado, e Futuro” como um aposto a “Presente”. E vejamos, aqui, não uma expressão de presente em oposição a passado e futuro pós-vírgula, mas ambos como fundamentação, enquanto ausência, do vir-a-ser presença do presente. E, da mesma forma, podemos fazer o caminho contrário, em que o presente é o lugar de convergência – e todo lugar é lugar de convergência (HEIDEGGER 2004: 26) – e presentificação dos passado e futuro ausentes.
O tempo de que fala o poema não é tempo cronológico, linear ou evolutivo. O tempo aqui é o do jogo perene entre permanência e ausência, desvelar e velar, em que sua qualidade não seja exatamente ser maior que a medida, mas não ter medida, por ser “sucessão” (LISPECTOR 1998: 44) de um instante para o outro.
Whose ears have heard / The Holy Word / That Walked among the ancient trees, diz o poema. Mas de quem são os ouvidos que escutam a Palavra Sagrada? Uma leitura habitual os ligaria ao Bardo, humano e ouvinte. Também. Mas podemos percorrer o caminho não-habitual, que não habita em fixo, mas encaminha o caminho ao estranho e desconhecido. Os ouvidos pertencem ao Presente. O presente tem os ouvidos enquanto os ouvidos habitam o presente. E, do mesmo modo, os ouvidos têm o presente enquanto o presente os habita, não nos esquecendo “que habitare (“habitar”) é um freqüentativo de habere (“ter”)”. (TORRANO 2006: 22)
Os ouvidos ouvem no presente enquanto o presente se apresenta e, nos ouvidos, recebe seu sentido, sem que se faça aqui, no entanto, um pensar subjetivo do humano como fundamento do real presente. O que se dá é que não podemos desvincular os ouvidos do presente ou o presente dos ouvidos, na medida em que os ouvidos compõem o acontecer do presente. “A percepção é um acontecimento em que o homem, nele acontecendo, entra no acontecer”. (HEIDEGGER 1999: 165) O pertencimento é, portanto, mútuo.
Os ouvidos não são o fim da Palavra Sagrada, assim, mas têm com ela seu sentido presente. O que é a Palavra Sagrada, porém? Costuma-se a encarar no sentido bíblico, mas busquemos um interpretar que não o exclua, ao ampliar-lhe o horizonte. O inglês holy (“sagrado”) vem do germânico halig, que diz intacto, inteiro, todo. Relaciona-se à raiz ad-2 que, por sua vez, diz puro e inteiro, também, e é da qual se origina o latim augere, dizer, criar, profetizar, gerar. Do augere vem o português autor, que podemos relacionar ao poeta, que diz, cria e gera a partir do sagrado. Voltando, portanto, ao Sagrado enquanto tema, já que dele nunca nos deslocamos de fato, nos perguntemos: o que é esse intacto intangível que contém, ou é, inteiro e todo? Costumamos pensar o intangível como algo no âmbito do divino e do desconhecido, espiritual, e de certa forma o podemos ver assim. O que halig como inteiro e todo problematiza é a visão do espiritual metafísico do qual a realidade se distanciaria.
O problema se constitui como entrave quando raciocinamos de modo a separar, platonicamente, nosso real do espiritual, considerado intangível. O que o Sagrado diz e se confirma na raiz indo-européia kailo-, é o que é puro, mas também brilhante. Essa origem Sagrada, portanto, é ausência obscura, mas também condição e proveniência da presença enquanto iluminar-se e, logo, dela não se destaca. Surge, assim, a importância de darmos atenção ao augere latino enquanto criar. O escuro desconhecido e ausente é a origem de todo o iluminado presente, ao qual o Bardo nos convida à audição, através de, em seu canto, iluminar o próprio obscuro na memória.
O canto de Blake nos chama a perceber isso na própria Palavra Sagrada, que, sendo sagrada, é parábola, do grego pará-bállein (lançar no meio). Proveniente do desconhecido obscuro, a palavra não só é dita, mas se diz enquanto se lança iluminada e luminosa – ou, simplesmente, brilhar – ao entre. Prova disso é que, no poema, não está ela, embora sagrada, em um local distante e intangível, mas caminhando entre as antigas árvores, que, antigas, são presentificação do passado.
Se, aqui, pensamos
A segunda estrofe começa com Calling the lapsed Soul / And weeping in the evening dew; / That might control/ The starry pole, / And fallen, fallen, light renew! Revela-se aqui o que faz o Bardo: chama a alma indolente, faz-lhe um convite à experiência da canção. A alma é convidada porque não participa da canção, e, por isso, é lapsed. Em seu sentido moderno, lapse, ou lapso, em português, é uma falha de memória. Um conceito metafísico como esse pode, no entanto, ser aprofundado se mais uma vez pensarmos a memória na dinâmica entre o lembrar e o esquecer, entre presença e ausência poética. Lapse é degenerar. Mas como se degenera uma alma? De-generar significa descer (de-) para longe do gênero. Gênero é classe, mas também é origem, ao se relacionar à procriação, à geração, e ao próprio grego gyné, mulher, aquela que gesta. Degenerar é se distanciar da origem e da mãe. E a origem aqui não é um pré-histórico distante com o qual não temos ligação, mas sim o princípio que faz sermos o que somos. E a alma, o que é?
Alma em latim se diz anima, de onde vieram as palavras animar, animado. Não é ela algo distinto do corpo, mas o que o move e o que, com ele e nele, se move. Assim diz também o grego psyché, que é alma e respiração, sopro, o movimento de ir e vir dos pulmões.
A alma lapsed se degenerou. Indolente e apática, ela se separou do corpo no mundo que pensa corpo e espírito como estâncias apenas distintas, quando, não só são distintas, mas se apresentam sempre unidas, em uma dando-se a outra, complementarmente. Por isso a chama o Bardo, convidando-a para uma festa em que possa mesmo controlar o pólo estelar. E o que é pólo estelar?
Pólo é o extremo, a ponta, o limite. Pensemos, por exemplo, nos pólos do planeta Terra. O pólo do poema, porém, é um pólo estelar, ou seja, onde se encontram as estrelas. Mas como podem as luminosas e grandiosas estrelas, distantes no céu, alcançarem o homem? No poema, contudo, convergem no pólo terrestre como se isso fosse possível sem conseqüências catastróficas. Falta pensar que o homem, no Pólo Norte, no Pólo Sul, na França ou no Afeganistão, enxerga os astros, distantes, no divino céu, e os faz memória. Mais uma vez, não podemos separar a percepção do perceber. As estrelas e o pólo convergem no homem, ou, melhor dizendo, poderiam convergir, não se encontrasse a alma indolente. O pólo, no entanto, é também o pólo magnético do ímã que faz convergir, em si, o que lhe é próprio atrair. O pólo não é só a Terra, mas o próprio homem, dando sentido e convergência a céu e terra, não mais havendo entre eles um lapso, mas sendo a própria alma e o corpo as instâncias micro-cósmicas da unidade entre ser e não-ser, conhecido e desconhecido, espiritual e material.
O homem, não mais indolente ou apático, pode ser dono de si enquanto pólo de convergência de terra e estrelas, corpo e espírito. É a essa união que convida o Bardo, à celebração da palavra que se lança no entre, sem nunca se degenerar porque sempre tem em si sua origem. O homem em si é palavra, porque promessa da Linguagem. E, aqui, busquemos uma compreensão de Linguagem que não a compreenda, mas que seja por ela compreendida. Que não seja uma faculdade, humana, mas condição de manifestação e de habitação do homem, que, no convergir polar do local poético, presentifica seu corpo de memória. O homem, não degenerado, pode fazer, na Terra, se revelar e renovar a luz. A luz das estrelas, no homem, se renova e revela, ao conduzi-lo a seu sentido e origem em sua habitação: a Linguagem.
Nas terceira e quarta estrofes, o Bardo faz seu canto. Convida Terra ao retorno, ao surgimento de grama orvalhada, na manhã, com o fim da noite. Mas a Terra de que fala o Bardo não pode ser um mero planeta, já que esse não gira ou deixa de girar a depender de um convite. O próprio nascer da Terra, contudo, é dimensão que lhe dá o homem, e o convite, mais uma vez, é um aviso ao homem, em sua alma indolente e elapsada do corpo, para que vivencie a Terra.
The harmony of soul and body. (…) We in our madness have separated the two, and invented a realism that is vulgar, an ideality that is void. (WILDE 1985: 24)
Wilde, como poeta-Bardo que é, nos ajuda a compreender o poema. O convite à Terra é um convite a um novo homem, aqui compreendido não como um homem diferente de tudo que já tenha sido, mas novo enquanto aquele que guarda seu frescor originário. É um chamado – in-vocação – a um homem bipartido e esquizofrênico, degenerado, apático e indolente, para um caminho que o leve à novidade do frescor. Blake, o Bardo, chama-nos todos a escutar a Palavra Sagrada, a linguagem, o movimento de presentificação do Real – nunca em oposição ao espiritual. Se o homem de fato aceitar o convite, podemos mesmo supor o ascender de uma nova Terra e um novo homem saudável e dolente, na medida em que tem em si a dor e a angústia da identidade e da diferença de ser singular e é aguardado, acontecendo junto à Terra, pela grama e as estrelas. O homem, se não se desvia, tem tudo a si dado till the break of day. E till aqui não é apenas até enquanto prazo e limite cronológico, mas é a/para ao manifestar sentido, pois é na aurora, entre sombra e luz, entre noite e dia, entre esquecer e lembrar, entre ser e não ser, que pode o homem ser promessa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAKE, William. Canções da Inocência e Canções da Experiência. São Paulo, Disal 2005.
CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético – A história literária. Rio de Janeiro, Antares 1982.
GLARE, P. G. W. et al.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, Vozes 2003.
_____. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro 1999.
_____. “O tempo da imagem do mundo”. In: Caminhos de floresta. Coimbra, Calouste Gulbenkian 2002.
JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro, 7Letras 2005.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro, Rocco 1998.
POKORNY, Julius. Indogermanisches etymologisches Wörterbuch. Bern, Francke 1959.
TORRANO, Jaa. “O mundo como função de Musas”. In: HESÍODO: Teogonia – A origem dos deuses, São Paulo, Iluminuras 2006.
WILDE, Oscar. The picture of Dorian Gray. Inglaterra, Penguin Books 1985.
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